O policial e o mano da periferia, amigos de infância: ontem se encontraram e horas depois estavam mortos. Por Daniel Trevisan

Atualizado em 1 de agosto de 2020 às 9:23

Alguns podem chamar de crime, outros de sucessão de erros que o Código Penal não alcança e levou à perda da vida de dois jovens pobres da periferia, que tiveram destinos que só são diferentes na aparência. Mas, no fundo, refletem os dois lados da mesma moeda. A face visível e violenta da tragédia social que caracteriza a sociedade brasileira.

Eram 23 horas aproximadamente de ontem quando Alexsandro da Silva Machado, o rapaz que aparece fardado na foto acima, tirou a arma do coldre e deu um tiro no próprio queixo, no 101o. Distrito Policial em São Paulo, que fica no Jardim das Imbuias, Zona Sul. Ele era do destacamento ambiental da Guarda Civil Metropolitana, mantida pela prefeitura paulistana.

Pouco tempo antes, já noite, ele havia atirado contra Yago Araújo, rapaz que ele conhecia aparentemente desde a infância, pois morava perto da casa de sua mãe, na periferia. Quando ele passava pelo local, houve um desentendimento. Parentes dizem que Alexsandro reagiu a uma tentativa de Yago e alguns amigos de tomar a arma dele.

Um colega de Alexsandro na GCM disse que os antigos amigos souberam naquela hora que ele tinha se tornado guarda e, ao vê-lo, teriam partido para cima para tomar-lhe a pistola. Ele atirou. Yago ainda foi levado por Alexsandro para o Hospital de Parelheiros, mas não resistiu.

Alexsandro foi até o 101o. DP, para lavrar a ocorrência e o delegado de plantão lhe deu voz de prisão. “Ele ficou desesperado, pegou a arma e atentou contra a própria vida”, disse um colega. Ele foi levado para o Hospital do Grajaú, mas já estaria com morte cerebral declarada.

O episódio confirma que os agentes de segurança são, na esmagadora maioria, pessoas pobres. Muitas vezes, pobres que maltratam pobres, cheios de preconceito e com uma formação na academia que não elimina essa visão distorcida que têm da própria comunidade.

Em uma carta que enviou a Lula, em 2009, quando este ainda era presidente, o ex-pistoleiro Cabo Bruno contou como se tornou matador na mesma região onde os dois jovens morreram. Ele acreditava que matar supostos criminosos era a solução para a segurança pública.

“Quantas vezes prendia ladrões, estupradores, etc, levava-os para o Distrito Policial e era comum depararmos com eles em liberdade (pois a corrupção era grande nas delegacias). Vendo o sofrimento das vítimas, essa revolta foi tomando vulto em meu íntimo, até que em 1982 ela explodiu. Seguindo péssimos exemplos de outros companheiros de farda, inclusive oficiais, comecei a infeliz e trágica caminhada de fazer justiça pelas próprias mãos”, escreveu.

A correspondência tinha por objetivo pedir indulto a Lula, que não concedeu, mas encaminhou a carta ao Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo, para que o órgão decidisse o que fazer, já que havia relato de que o tempo de pena já havia sido cumprido.

Três anos e meio depois, convertido à religião evangélica e pastor, ele foi assassinado com 18 tiros, quando voltava para casa depois de um culto. Esse crime nunca foi esclarecido, mas pode ter sido vingança da família das mais de 50 pessoas que ele assassinou.

A violência cobrou sua conta. Ontem, pode ter acontecido o mesmo. De qualquer forma, uma tragédia. A nossa tragédia como nação.