Aumentou a ira dos franceses depois que o primeiro-ministro Edouard Philippe fez o anúncio oficial da reforma da previdência nesta quarta-feira. A greve que já dura seis dias vai continuar.
Para Guillaume Duval, membro do Conselho Econômico, Social e Ambiental francês, a reforma da previdência, que motivou o movimento, já era esperada, assim como a revolta contra ela.
Na visão do jornalista, o governo Emmanuel Macron aprofundou a penúria vivida nos transportes, educação e saúde, subestimando os efeitos sociais.
Um debate nacional e alguns bilhões de euros. “Ele pensou que graças a isso havia reconquistado a opinião pública e poderia continuar com as reformas bastante duras que queria fazer. Ele foi orgulhoso e arrogante demais”, afirma Duval.
Nesta entrevista para o DCM, ele explica o teor da reforma da previdência, que ele descreve como parte de um “regime muito autoritário”, comparável ao de Donald Trump e Viktor Orbán.
Na visão do editorialista do jornal Alternatives Economiques, a França, um dos países que mais gasta no mundo com previdência, tem medo de ficar mais pobre ao se aposentar. A esquerda, diz ele, está dividida e a força de oposição mais bem articulada é a extrema direita, o que deve piorar o cenário. Mas a longo prazo, ele vê uma mudança possível.
DCM: Como você avalia a amplitude da mobilização contra a reforma da previdência na França?
Guillaume Duval: Primeiramente, não é uma greve geral. É uma greve do setor de transportes reconduzível. No entanto, é uma greve que tem amplitude e impacto porque ela bloqueia fortemente a região parisiense, porque o transporte público está bastante paralisado e isso tem um impacto muito forte pois a maioria das pessoas se desloca desse modo.
E é uma greve que, por enquanto, é bastante apoiada pela opinião pública. As pessoas não estão necessariamente em greve, mas até o momento elas apoiam os grevistas porque estão preocupadas com essa reforma, mas não entendemos muito bem aonde ele quer chegar.
Trata-se de mudar a maneira como se calculam as aposentadorias futuras e juntar todo mundo num mesmo sistema de aposentadoria, pois hoje há diferentes regimes. Não é o mesmo para o sistema público e o sistema privado. O objetivo é mudar para um sistema de pontos que considera o conjunto da carreira da pessoa. É uma grande mudança.
As pessoas não entendem muito bem quem vai ganhar e quem vai perder e elas têm medo de perder, ainda mais quando o governo paralelamente anuncia que quer fazer economias na previdência no futuro, a partir dos próximos anos. É uma reforma que preocupa todo mundo. E é por isso que as pessoas apoiam os grevistas mesmo se elas não fazem greve por enquanto.
DCM: Como você concebe o fato de o governo ver a previdência como um meio do Estado para fazer economia?
A França é um dos países desenvolvidos que mais gasta com previdência em termos de parte do PIB. Eu sei que é o caso também do Brasil. Gastamos 14% do PIB com a previdência. Isso é mais do que a Alemanha, mais do que o Reino Unido, é mais ou menos equivalente à Itália, que é um país que gasta bastante.
Nesse sentido, o governo deseja diminuir as despesas no futuro visto que no futuro haverá mais aposentados do que hoje. Então é isso que preocupa a população.
O valor da aposentadoria hoje na França é bastante elevado. Somos um dos países da Europa que tem menos aposentados pobres, pessoas que ganham menos de 60% da renda média. Mas as pessoas estão preocupadas ao se dizer que isso não vai durar muito tempo e que a reforma do governo vai empobrecer muito os aposentados de amanhã.
DCM: Você concorda com essa percepção?
É uma percepção, sim… Se eu concordo, isso não eu não excluo na medida em que o governo colocou como prioridade reduzir os gastos públicos. Ora, a previdência é uma grande despesa. O fato de que ele quer reduzir, é bastante provável.
E a outra coisa é que o sistema escolhido, por pontos, permite em muito de fazê-lo porque pode-se mexer no que se chama “valor do ponto”, para fazê-lo perder valor ao longo do tempo, não aumentando-o, por exemplo, de acordo com a inflação ou o salário mínimo * e isso facilita um rápido abaixamento do valor da aposentadoria no futuro. Isso é o que preocupa as pessoas e é por isso que é uma perspectiva bastante crível com esse governo.
DCM: De que forma você compara essa proposta de reforma à de 1995?
A situação é ao mesmo tempo comparável e diferente. Nos dois casos, trata-se de atacar especialmente os regimes que chamamos “regimes especiais de aposentadoria”.
Ao mesmo tempo, para a companhia ferroviária e o transporte público urbano de Paris tem regimes especiais de aposentadoria que lhes permitem se aposentar mais cedo em relação aos assalariados “normais”, antes dos 60 anos por enquanto. Em 1995, já queriam atacar isso, reduzir o valor das aposentadorias futuras.
Em 1995, havia paralelamente também uma reforma do seguro-saúde, na qual tratava-se de reduzir as despesas com a saúde, o que fazia as coisas se agravarem para os servidores. Por outro lado, a situação se tornou explosiva porque havia uma reforma que logo após uma eleição presidencial.
Jacques Chirac, presidente francês da época, havia ganhado com o tema da luta contra a fratura social. Ele ganhou, mesmo sendo um candidato de direita, usando um discurso bastante à esquerda durante a campanha, dizendo que ia fazer muito no campo social depois. E alguns meses depois, ele começou a fazer reformas que não tinham nada de sociais. Isso que fez as coisas explodirem fortemente em 1995.
Desta vez, trata-se de uma reforma da previdência mas ao mesmo tempo era uma reforma esperada, pois ela foi anunciada por Emmanuel Macron em sua campanha eleitoral. Então não há o mesmo efeito que em 1995 com relação à reforma da época.
Inclusive, é uma reforma que intervém depois da chamada revolta dos coletes amarelos, contra a alta no preço do combustível, em particular. Tivemos já há um ano grandes revoltas e o fato que o governo Emmanuel Macron volte hoje de novo com reformas antissociais, visando os assalariados normais para as aposentadorias futuras é o que exaspera.
O fato de que o governo não tenha tirado lições da revolta dos coletes amarelos, que era necessário que ele parasse com reformas antissociais, é isso também o que exaspera hoje.
O contexto é diferente, mas o conteúdo e o objetivo da reforma são os mesmos e as razões pelas quais ela degenera e que seja uma prova de força muito dura, mesmo que elas sejam diferentes, existem nos dois casos.
DCM: O que explica que desde 1995 tenha havido oito reformas da previdência?
Já faz décadas, mesmo antes de 1995, que há reformas da previdência que qualificamos de “paramétricas”. Quer dizer que mantém-se a estrutura do sistema previdenciário, que é fundado sobre a ideia de que, de um lado, é preciso ter trabalho tantos anos para ter direito a uma aposentadoria completa. Por outro, o valor da aposentadoria reflete os melhores anos do salário. Essa é a lógica atual do sistema.
Há 30 anos, alteram-se os diferentes parâmetros. Alonga-se a duração da contribuição, reduz-se a taxa de substituição, alonga-se o período sobre o qual se calculam os melhores anos, etc, para limitar as despesas com a previdência, mas permanece a mesma lógica, desde o início. O que é novo agora é que quer-se mudar a lógica do sistema da previdência.
Um dos argumentos para fazê-lo é justamente o que você diz: o sistema atual, passou-se muito tempo remendando-o, mudando-o, e que o novo sistema de aposentadorias, com a mecânica de pontos, precisaríamos mudar menos no futuro os parâmetros para conter as despesas com previdência. É o argumento do governo. Mas do ponto de vista imediato, é mais uma reforma.
DCM: Um sistema único de pontos na previdência corresponde a um nivelamento “por baixo”, como afirmam os sindicatos?
O fato de ir rumo a um sistema de aposentadorias único é em si um fator de igualdade. Fato é que a situação atual do ponto de vista da justiça e da equidade não é boa, pessoas em condições similares não podem se aposentar igualmente, então é um problema hoje. Mas existe o risco que amanhã se nivelem as condições de aposentadoria por baixo. É o temor que é muito forte no setor público. A natureza da mudança de sistema no setor público é muito maior do que no setor privado.
Uma parte das dificuldades atuais provém do fato que não há somente pessoas que trabalham no setor ferroviário ou no metrô, que correm o risco de perder o regime especial. Há muitos professores e servidores de hospitais. Entre os servidores do setor público, o risco é de perder muito. Então isso faz com a situação seja explosiva nesse campo, mais do que ela já era.
O setor da educação na França está submetido a graves dificuldades ligadas às condições de trabalho, em particular nos bairros “difíceis”, e também em relação ao fato de que a remuneração dos professores é baixa. O setor dos hospitais também está em grandes dificuldades há muito tempo porque se limitou o orçamento e mesmo antes que se fale de aposentadoria, já havia greves bastante duras nesse setor.
Além do setor de transportes, que é o que para hoje, a questão particular da educação e da saúde corre o risco de ter uma forte redução da aposentadoria, razão pela qual estão fortemente mobilizados.
DCM: O governo Macron propõe uma reforma da previdência inspirando-se em um modelo por pontos, como o da Suécia, onde um a cada cinco aposentados está abaixo da linha da pobreza. Há algum país em que esse modelo funcionou?
Justamente cita-se muito o exemplo da Suécia para vender esse sistema. Mas o exemplo da Suécia, pelas razões que você evoca, não é muito inspirador. Houve grandes dificuldades no sistema deles, de pontos, principalmente durante a crise de 2008-2010 porque é um sistema que faz baixar o valor da aposentadoria numa situação desse tipo numa situação desse tipo, que bloqueia o nível de despesas de aposentadoria no PIB. Quando PIB recua, o nível das receitas também recua. Então é um sistema que não dá muita vontade que se traduz pela presença de duas vezes mais aposentados pobres do que na França.
O governo tenta combater isso anunciando que vai implantar um salário mínimo da aposentadoria de mil euros, dizendo que ninguém que teve uma carreira completa poderá receber uma aposentadoria inferior a mil euros, o que é um pouco superior ao que se faz hoje. Mas mil euros ainda é muito pouco e muito abaixo da linha da pobreza na França.
DCM: De que maneira você percebe a reação da classe política frente a essa reforma?
O problema na França é que temos um regime político ligado a um escrutínio majoritário, ligado à presidencialização do regime. E um sistema político ligado à presidencialização do regime que faz com que o Executivo tenha muito poder, que tem geralmente uma maioria absoluta no parlamento, que lhe obedece.
Não precisa negociar com ela. Isso se insere numa lógica muito autoritária, vertical, que é fundamentalmente a de Emmanuel Macron, que chegou com uma postura bastante “bonapartista”, como dizemos na França, em referência a Napoleão Bonaparte, que foi uma espécie de ditador do século XIX na França e na Europa.
O conteúdo da reforma conjuga essa atitude bastante “jupiteriana”, como diz o presidente da República, faz com que todo o resto do arco político seja fortemente contrário a essa reforma e a Emmanuel Macron, mas o problema é que essa oposição é muito dividida. Temos uma forte extrema direita na França, onde ela é considerada a principal força política do país, em todo caso a principal opositora ao governo.
E na esquerda, temos pessoas que têm dificuldade para se entender e conter o presidente da República. A “France Insoumise” em torno de Jean-Luc Mélenchon e os antigos socialistas, que ainda eram muito poderosos na França há uns dez anos estão muito divididos e não estão prontos para se juntar a Jean-Luc Mélenchon.
Então uma das questões que se coloca no plano político é: essa reforma e o movimento que ela gera vai ou não favorecer um reagrupamento da esquerda frente a Emmanuel Macron? Não vemos realmente a premissa.
DCM: De que forma você analisa o fato de essa greve ocorrer na sequência das manifestações dos coletes amarelos e protestos de estudantes contra a precariedade?
O movimento dos coletes amarelos era inesperado, não obedecia a uma palavra de ordem e a organizações, foi bastante espontâneo e traduziu a exasperação e o “saco cheio” dos setores médios e populares, em particular nas zonas rurais e pequenas cidades. Os franceses poderiam ter pensado que isso levaria Emmanuel Macron a ser mais prudente e tentar negociar mais suas reformas.
Sobre a reforma da previdência, ele discutiu longamente com os sindicatos, mas ele nunca negociou de verdade. Ele jamais colocou um projeto na mesa tentando ver qual compromisso haveria, se os sindicatos apoiariam. É intencional, mas eu penso ser um erro.
Em meio ao movimento dos coletes amarelos, ele fez o chamado “grande debate nacional”, onde ele mesmo foi ao encontro dos franceses em ao menos uma dezena de lugares e fez discussões com os franceses.
Ele pensou que graças a isso e ao fato de ter liberado alguns bilhões de euros para acalmar as coisas, ele havia reconquistado a opinião pública e poderia continuar com as reformas bastante duras que ele queria fazer. Ele foi orgulhoso e arrogante demais porque ele não percebeu que os franceses não se tornaram mais “macronistas” do que antes e que as coisas não iam bem.
Desde setembro, houve muitos movimentos. Você evocou os estudantes, mas há meses há muitos movimentos nos hospitais, razão pela qual houve diversas flutuações dentro do próprio governo nas últimas semanas, com diferentes propostas, balões de ensaio que foram lançados para tentar dissuadir a contestação antes que ela começasse.
O governo propôs num dado momento aplicar a reforma às pessoas que entrariam no mercado de trabalho a partir de 2025, dizendo que todas as pessoas que têm hoje um emprego vão se manter no antigo sistema. E só os jovens que chegarão ao mercado de trabalho em 2025 que terão o novo sistema. Então é uma maneira de contornar as
dificuldades e oposição dos adultos de hoje, mas tinha o inconveniente de adiar para 40 anos uma mudança efetiva do sistema previdenciário que era supostamente muito melhor.
DCM: A forte repressão policial das manifestações da greve ficou evidente em vídeos que circularam na internet, assim como a repressão policial nos protestos dos coletes amarelos. Trata-se de uma face autoritária de um governo neoliberal?
Há uma crispação que já é antiga. É algo que se deve apontar já para a presidência de François Hollande, quando houve uma série de leis que limitam a liberdade. Em função particularmente dos atentados, a França foi posta sob estado de urgência durante vários anos.
Emmanuel Macron, quando assumiu retirou o estado de urgência mas incluiu muitas medidas que estavam previstas pelo estado de urgência na lei comum. Então grosso modo estamos em estado de urgência permanente na França.
Desde as leis do trabalho em 2016, houve manifestações sobre essa questão. Houve uma política muito agressiva da polícia em direção aos manifestantes. A polícia impede os manifestantes inclusive de sair das manifestações e lhes “rega” de gás lacrimogêneo.
Houve a introdução na manutenção da ordem de uma arma que se revelou muito perigosa, um lançador de balas de defesa, que tem mutilado muitas pessoas há dois anos. Então que há uma deriva policial e judiciária na repressão das manifestações que traduz efetivamente um caráter muito autoritário do regime atual.
Mas é uma deriva que data em parte já de um pouco antes, que é muito preocupante e continua preocupando os franceses sobre o caminho para onde estamos indo de modo que hoje a alternativa mais provável se esse governo, se essa maioria fracassarem é a pior das extremas direitas, então não vai melhorar, em particular no no campo das liberdades.
DCM: Essa deriva autoritária somada ao caráter fortemente presidencialista são as razões pelas quais você usa o termo “regime”?
Sim. A França é dotada desde a Quinta República, de 1958, de um regime presidencial, em que o Poder Executivo tem todos os poderes nas mãos e muito pouco contra-peso para controlar sua ação. E Emmanuel Macron foi a fundo nas possibilidades desse tipo que existem na Constituição francesa.
Sob esse ângulo, temos aqui um regime que é cada vez mais percebido aqui como iliberal, um pouco como Trump, Orban, etc. Não chegamos a esse estado, mas a preocupação é grande sobre essa questão na França.
DCM: Justamente você citou sobre esse ponto a questão da reforma da previdência no Brasil que também foi proposta sob governos fortemente neoliberais e autoritários. Isso revela uma face autoritária do neoliberalismo a nível internacional?
Há manifestamente uma tendência geral a uma crispação autoritária, inclusive nas democracias que pareciam mais estabelecidas, como a França, como o Reino Unido ou como os Estados Unidos, que é ligada amplamente ao fracasso do neoliberalismo.
As reformas que foram conduzidas há trinta anos para liberalizar o mercado de trabalho, abaixar o custo do trabalho, privatizar a economia, etc, só tiveram como resultado, na percepção da maior parte das pessoas, permitir de agravar as desigualdades e degradar as condições de vida dos pobres e classes médias e permitir aos ricos escapar dos impostos através dos paraísos fiscais.
Esse estado é cada vez menos suportado pelas populações. Em reação, as elites, quando conseguem se manter no poder, têm uma prática cada vez mais autoritária ou populista, tentando jogar sobre bodes expiatórios, como os estrangeiros, os imigrantes, para se manter no poder apesar de tudo.
DCM: As perspectivas, portanto, em relação a essas reformas e modelo econômico são de uma pacificação ou de agravamento da crispação social?
No imediato, o que parece previsível é o aumento da crispação social pois por enquanto o que é muito difícil é que não há um interlocutor. Você tem um governo que não quer perder nada, que vai até o fim para passar sua reforma. E diante disso, pessoas que estão exasperadas.
Por outro lado, há representantes fracos e divididos. Então há um risco de escalada, uma grande dificuldade para chegar a uma negociação e um compromisso com esse governo.
De imediato, sou bastante pessimista. Mas essa crispação pode levar a longo prazo à ideia de que é preciso mudar de regime político na França, que é preciso mudar essa Constituição que favorece um regime presidencial potencialmente autoritário. E que é preciso mudar de regime político para ter um sistema que obriga os governantes a fazer compromissos, que obriga os governantes a negociar com os diferentes representantes dos interesses sociais quando eles querem fazer reformas e mudar alguma coisa.
Sob esse ponto de vista, a longo prazo, isso pode se mostrar positivo. Mas a curto prazo, corre o risco de ser difícil e não vejo como podemos sair dessa prova de força.
* Em anúncio desta quarta-feira, dia 11, o primeiro-ministro Edouard Philippe prometeu que os pontos serão fixados de acordo com o salário mínimo, definido com parceiros sociais.