Publicado no Justificando.
POR Rodrigo Saccomani, Hugo Albuquerque e Daniel Biral
As últimas semanas no Brasil foram um misto de choque, revolta e transe: não era para menos, na esteira da já histórica revelação dos áudios feitos, no âmbito de uma delação premiada, por um dos donos do conglomerado JBS/Friboi, acabaram por ser expostas para o Brasil as vísceras da República, isto é, as indecorosas conversas que ele tinha com o presidente em exercício Michel Temer (PMDB-SP) e o senador, e segundo candidato mais bem votado à presidência, Aécio Neves (PSDB-MG). O que parecia ser o desfecho da crise que devora o Brasil nos últimos anos, se tornou, contudo, um novo impasse. E o Brasil parece ter viciado em impasses.
Recentemente, não custa lembrar, a Coreia do Sul também passou por um nada trivial processo de impeachment, no qual a presidenta da república Park Geun-hye foi pega em um esquema bizarro de corrupção, o qual envolvia grandes conglomerados sul-coreanos como a Samsung, LG e Hyundai e ainda, uma estranha seita que estendia seus tentáculos às decisões governamentais.
Os sul-coreanos, no entanto, resolveram rapidamente seu problema: a presidenta foi defenestrada seguindo-se o rito constitucional e, no mesmo diapasão, novas eleições foram rapidamente convocadas estancando a hemorragia.
O impeachment é previsto no art. 65 da Constituição daquele país asiático, o que não é muito diferente da regra brasileira. No entanto, seu art. 68 prevê a solução democrática: a perda do cargo por cassação é hipótese para convocação de novas eleições, pois gera vacância.
Enfim, nada revolucionário. Apenas a ideia de que o presidencialismo exige um vínculo mais direto com o povo, não podendo descartar o elemento popular em alguma parte do processo de destituição do chefe de Estado – no caso, na rápida convocação de eleições em caso de destituição por impeachment.
Os constitucionalistas mais apegados ao texto diriam, de imediato, que no Brasil não é assim, mas é preciso ponderar o que realmente importa: poderia ser, porque não há óbice constitucional para que se mude a própria Lei Maior nessa direção. As eleições periódicas são cláusula pétrea, não eleições a cada quatro anos, portanto, uma emenda constitucional para obrigar eleições diretas, após a destituição do presidente, é perfeitamente possível.
Ainda, com a devida vênia, dizer que o art. 16 da Constituição impediria uma emenda desse tipo nos parece equivocado, uma vez que o princípio da anualidade eleitoral se refere às leis eleitorais e não às emendas à constituição, vide a emenda que aprovou a reeleição – sobre as emendas se aplicam as cláusulas pétreas, o que no caso não é nenhum impeditivo.
O estranho e recém-descoberto apego ao texto seco da Lei Maior de 1988, por outro lado, parece desconhecer que as eleições indiretas, as quais deveriam ser realizadas no Congresso caso Temer seja impeachmado ou condenado criminalmente pelo STF, devem ser feitas na “forma da lei”, a qual jamais foi elaborada: isto é, não há lei complementar para regulamentar eleições indiretas. A tão constitucional, normal e regular eleição indireta, portanto, hoje, seria uma impossibilidade momentânea tanto quanto a vedada eleição direta.
Se o argumento dogmático pouco ajuda na defesa das suspeitíssimas eleições indiretas, uma análise material da Constituição nos revela o óbvio: as indiretas seriam conduzidas por um Congresso Nacional atolado em escândalos de corrupção, diretamente interessado, pelos piores motivos, na escolha do novo chefe de Estado.
Com essas novas informações não apenas da Lava Jato, mas de operações como a Patmos pode-se definir que inúmeros deputados eleitos na última eleição foram irrigados com volumes de dinheiro não contabilizados e isso já seria o bastante, do ponto de vista ético e moral, para se impedir qualquer tentativa de eleição indireta, mesmo sendo este a letra constitucional.
O argumento das indiretas, por sinal, só ajuda a pensar, talvez que eleições diretas também para o Congresso merecessem ser convocadas, uma vez que o Parlamento se encontra desalinhado com os interesses da nação e que não representam os anseios, por mais variados que sejam, da sociedade.
Até as pedrinhas da rua sabem que Temer não terá como se sustentar politicamente. Ou melhor, que qualquer questionamento a respeito dos áudios pode, no máximo e com alguma boa vontade, ser uma estratégia para o inquérito criminal instaurado para investigar o presidente, mas não para os efeitos políticos.
Simultaneamente, entretanto, as saídas para o país são novamente monopolizadas por uma “classe política” que da noite para o dia se mostrou ortodoxamente defensora da rigidez constitucional — depois de meses arquitetando, anuindo e/ou concordando com a extirpação do sistema igualmente constitucional de seguridade social e proteção ao trabalho.
Parte da mídia corporativa passou a concordar, desde o início, com a saída de Temer e eleições indiretas, “como manda a Constituição”, mas sempre acenando que a finalidade disso é manter as “reformas em curso” — as quais, por suposto, demandam uma mudança considerável em itens estruturais da Lei Maior de 1988.
Os setores progressistas, por seu turno, assumiram a defesa da realização de eleições diretas, contra os defensores da manutenção de Temer e dos indiretistas, os quais não somam nem 15% da opinião pública, o que pouco importa no Brasil atual, um país no qual oligarquias políticas decidem a regra do jogo.
Uma ida dos brasileiros às urnas ainda em 2017 não salvaria o país, mas lembraria aos poderes instituídos que é preciso minimamente considerar a vontade das pessoas para determinar quem é o presidente e, sobretudo, para se executar o programa de governo, o qual não apenas deve ser escolhido nas urnas como também executado da forma mais fiel possível pelo governo eleito – coisa que Dilma Rousseff ignorou em 2015, ao resolver aplicar em grande medida o programa derrotado nas urnas, fato que piora com sua remoção e a duvidosa ascensão de Temer para executar, de forma total, o programa de Aécio Neves e do PSDB.
No fim, isso não é, nem pode ser, um debate sobre exegese constitucional, mas do entendimento da Constituição como um projeto vivo e tendente a se adaptar para gerar direitos — fato que ninguém parece contestar quando, infelizmente, a finalidade é inversa, isto é, poucos são os que questionam essa possibilidade quando se tem o escopo de retirar direitos, hipótese essa que deveria ser vedada. Mais do que isso, precisamos perder esse gosto perverso pelo impasse para chegarmos a formulações e soluções.
É preciso que aprendamos uma grande lição dos últimos anos, sob pena de falirmos por completo como sociedade: a democracia necessita não apenas do respeito às formalidades, mas também de legitimidade material, o que se conquista respeitando o devir democrático.