Um artigo do acadêmico, historiador e ativista americano Howard Zinn (1922-2010) sobre as guerras e suas consequências.
Traduzido por Camila Nogueira
Como um veterano da Segunda Guerra Mundial e alguém que passou grande parte da vida escrevendo sobre e contra a guerra, penso algumas vezes se as pessoas e os governos ficariam tão interessados em lutar se pudessem ver o que o combate físico e suas consequências realmente significam. Muitas vezes, a realidade é ocultada por números vazios. Mais de 4.000 tropas americanas e mais de 1 milhão de iraquianos foram mortos no Iraque desde que os Estados Unidos declararam guerra em outubro de 2003. O seguinte artigo foi publicado em outubro de 2002 na revista The Progressive.
Em todas as declarações solenes de políticos cheios de si e de colunistas de jornais sobre a futura guerra contra o Iraque, e mesmo nos comentários confusos de alguns que são contra tal guerra, há algo faltando. A conversa é sobre estratégia e táticas, geopolítica e personalidades. É sobre guerra aérea e guerra terrestre, armas de destruição em massa, inspeções de armas, alianças, petróleo, “mudança de regime.”
O que está faltando é dizer o que uma guerra americana no Iraque fará com inúmeros seres humanos comuns que não estão preocupados com a geopolítica ou com as estratégias militares, que só querem que seus filhos vivam e cresçam bem. Eles não estão preocupados com “segurança nacional”, mas com segurança pessoal, com alimentos, abrigos, cuidados médicos e paz.
Eu me refiro aos iraquianos e os americanos que irão, certamente, morrer nessa guerra, ou perder um braço, uma perna ou a visão. Outros que serão atingidos por alguma doença estranha e agonizante que poderá levá-los a trazer crianças deformadas ao mundo (como aconteceu com famílias no Vietnã, Iraque e também nos Estados Unidos).
Verdade, tem havido discussões sobre a morte de civis americanos que, de acordo com alguns, resultou na invasão ao Iraque. Mas, como sempre acontece quando os estrategistas discutem sobre isso, a questão não é sobre os seres humanos mortos e feridos, mas sobre a quantidade de mortes que resultariam na retirada pública do apoio à guerra e qual seria o efeito disso nas eleições para o Congresso e para a presidência.
Isso era o que mais importava para Lyndon Johnson, como vemos nas fitas de suas conversas na Casa Branca. Johnson se preocupava com a morte de americanos se declarasse guerra contra o Vietnã, mas o que mais inquietava era seu futuro político. Se ele desistisse do Vietnã, disse a um amigo, o senador Richard Russell, “eles irão me colocar em dúvida, não é?”
De qualquer modo, soldados americanos mortos na guerra são sempre uma questão de estatística. Seres humanos individuais não estão nos números. É deixada aos poetas e romancistas a tarefa de tomar-nos pelos ombros e sacudir-nos e pedir para olharmos e ouvirmos. Na Primeira Guerra Mundial, dez milhões de homens morreram no campo de batalha, mas precisamos de John Dos Passos para confrontar-nos com o que isso significava: Em seu romance 1919, ele descreve a morte de John Doe: “No papel de piche do necrotério em Châlons-sur-Marnen, no vapor de cloreto de cal e de morte, eles pegaram a caixa de madeira na qual se encontrava tudo o que restava dele”.
A Guerra do Vietnã foi uma guerra que encheu nossas cabeças com estatísticas, dentre as quais uma se destacou, incorporada no rígido monumento em Washington: 58.000 americanos mortos. Mas ninguém teve que ler as cartas que os soldados escreveram antes de morrer para tornar aquelas estatísticas seres humanos. E também não foram listados todos os que não morreram mas foram mutilados de alguma maneira, amputados ou ficaram paraplégicos.
E quanto aos mortos entre “os inimigos” – isto é, aqueles jovens recrutados, manipulados ou persuadidos a morrer diante de nossos jovens compatriotas – eles não eram do interesse de nossos líderes políticos, de nossos generais, de nossos jornais e revistas e nem de nossas redes televisivas. Até hoje, a maioria dos americanos não faz ideia, ou só sabe vagamente, quantos vietnamitas – soldados e civis (na verdade, um milhão de cada) – morreram por causa das bombas e granadas americanas.
Dez anos atrás, naquela primeira guerra contra o Iraque, nossos líderes estavam orgulhosos do fato de que houve apenas algumas mortes de soldados americanos (e é aí que nos perguntamos se as famílias dos soldados mortos aprovariam a palavra “apenas”). Quando um repórter perguntou ao General Colin Powell se ele sabia quantos iraquianos haviam morrido naquela guerra, ele respondeu: “Eu realmente não me interesso por isso.” Um oficial de patente alta do Pentágono disse ao The Boston Globe: “Para dizer a verdade, não estamos nos focando nessa questão.”
Os americanos sabiam que as vítimas dos Estados Unidos foram poucas na Guerra do Golfo, e uma combinação de controle governamental da imprensa e da aceitação dócil da mídia quanto a esse controle assegurou que os americanos não fossem confrontados, como haviam sido no Vietnã, com os mortos no Iraque.
Há vislumbres ocasionais dos horrores infligidos às pessoas no Iraque, lampejos de verdade nos jornais que rapidamente desaparecem. Na metade de fevereiro de 1991, aviões americanos jogaram bombas em um abrigo contra ataques aéreos em Bagdá às quatro da manhã, matando de quatrocentas a quinhentas pessoas – a grande maioria mulheres e crianças – que estavam amontoadas lá para escapar dos bombardeios incessantes. Um repórter da Associated Press, um dos poucos que puderam ir ao local, disse: “Quase todos os corpos recuperados estavam irreconhecíveis, carbonizados e mutilados.”
No estágio final da Guerra do Golfo, tropas americanas participaram de um ataque terrestre em localizações iraquianas no Kuwait. Como na guerra aérea, eles não encontraram qualquer resistência. Com a vitória garantida e o exército iraquiano se retirando, os aviões americanos continuaram bombardeando os soldados que entupiam o caminho de saída de Kuwait. Um repórter chamou a cena de “um inferno ardente, um testemunho macabro. Do leste ao oeste, no chão de terra, havia corpos.”
Essa cena medonha apareceu por um instante na imprensa e então desapareceu com a celebração de uma guerra vitoriosa, que contou com políticos de ambos os partidos e com a imprensa. O presidente Bush vangloriou-se: “O espectro do Vietnã foi enterrado para sempre na areia do deserto da Península Arábica.” As duas maiores revistas de notícias, Time e Newsweek, fizeram edições especiais saudando a vitória. Cada uma delas devotou quase mil páginas para a celebração, mencionando orgulhosamente o número pequeno de americanos mortos. Não foi dita uma única palavra sobre os inúmeros iraquianos – soldados ou civis – que foram vítimas primeiro da tirania de Saddam Hussein e depois da guerra de George Bush.
Quase não há fotos de crianças iraquianas mortas, ou o nome de um iraquiano em particular, ou uma imagem de sofrimento e dor para mostrar ao povo americano o que nossa esmagadora máquina militar está fazendo com seres humanos.
O bombardeio em Afeganistão tem sido tratado como se os seres humanos não tivessem importância alguma. Tem sido retratado como uma “guerra contra o terrorismo,” e não uma guerra contra homens, mulheres, crianças. E as poucas reportagens da imprensa sobre “acidentes” foram rapidamente seguidas por pedidos de desculpas, negações ou justificativas. Há alguns boatos quanto ao número de civis mortos – mas sempre números.
A história humana, com nomes e imagens, raramente aparece. Quando muito vemos um rápido vislumbre de verdade, como um dia em que li sobre um garoto de dez anos, chamado Noor Mohammed, que se encontrava em uma cama de hospital no Paquistão, sem olhos, sem mãos, uma vítima das bombas americanas.
É claro que devemos discutir os aspectos políticos. Notamos que um ataque ao Iraque seria uma violação escandalosa à lei internacional. Notamos que a mera possessão de armas perigosas não é base para uma guerra – caso contrário, precisaríamos guerrear contra dúzias de países. Fingimos ignorar que o país que mais possui “armas de destruição em massa” é o nosso, que inclusive as usou mais frequentemente e com resultados mais mortais do que qualquer outro na Terra. Podemos fingir que ignoramos nosso histórico de expansão e de agressão. Temos evidências poderosas de enganos e hipocrisia nas maiores personalidades de nosso governo.
Mas, conforme contemplamos os ataques americanos no Iraque, não deveríamos ir além das agendas dos políticos e dos especialistas? (Um dos personagens de John Le Carré diz: “Eu desprezo especialistas mais do que qualquer outra criatura na Terra.”)
Não deveríamos pedir para todo mundo parar com essa conversa fiada por um instante e imaginar o que a guerra fará com seres humanos cujas faces não são conhecidas por nós, cujos nomes não aparecerão exceto, quem sabe, em um memorial de guerra?
Para isso precisaremos da ajuda dos artistas, daqueles que ao passar dos anos – desde Eurípedes até Bob Dylan – escreveram e cantaram sobre vítimas específicas e reconhecíveis da guerra. Em 1935, Jean Giradoux, o dramaturgo francês, com a memória da Primeira Guerra Mundial ainda em sua mente, escreveu The Trojan War Will Not Take Place (A Guerra de Tróia Não Vai Acontecer). Demokos, um soldado troiano, pede a velha Hécuba, rainha de Tróia, que lhe conte “como a guerra é.” Ela responde: “Como o traseiro de um babuíno. Quando o babuíno está trepando na árvore, e vemos seu traseiro, essa exatamente a face da guerra: vermelha, envidraçada, com escamas, coagulada, imunda.”
Se americanos o suficiente pudessem ver isso, talvez a guerra no Iraque não acontecesse.