Por Ignacio Godinho Delgado, professor de História e Ciência Política na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia-Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT-PPED).
As jornadas que se anunciam nos próximos dias de agosto não representam apenas a disputa entre os defensores do governo Dilma, que não são muitos nesse momento, e os que aspiram removê-la da presidência. Trata-se de decidir se nossa jovem democracia permanecerá refém da ação orquestrada de uma mídia oligopolizada, avessa à diversidade e ao pluralismo, centro irradiador da ação política da direita. Como é possível um governo que não cumpriu ainda um ano de mandato, dos quatro para o qual foi eleito, estar sob ameaça de deposição à revelia de qualquer fundamento constitucional?
Se o Parlamento aprovou às pressas as contas dos três últimos presidentes, em cinco mandatos diferentes, aquiescendo, pois, com a ocorrência das tais pedaladas fiscais, como podem essas ser evocadas para justificar um pedido de impeachment de Dilma? Por seu turno, mesmo sem considerar a absurda parcialidade das investigações policiais e procedimentos judiciais da Operação Lava Jato (ao tomar como propinas doações para o PT e manifestações de amor as dirigidas ao PSDB, embora advindas das mesmas empresas), como poderia o TSE cassar o diploma de Dilma, se tal presunção ainda não foi devidamente estabelecida como uma irregularidade num julgamento que garanta o amplo direito de defesa? Com é possível imaginar que sete juízes, sob a batuta, a elevação e a imparcialidade de figuras como Gilmar Mendes, se arvorem a anular 54,4 milhões de votos.
O problema não reside apenas em querelas judiciais. Se obtiver êxito, a mídia receberá um sinal claro de que tudo pode. Seu tratamento parcial do fenômeno da corrupção, por via do expediente fascista de imputá-la a um grupo político determinado, sem considerar suas condicionantes institucionais, gerou hordas tão imbecilizadas quanto esnobes que, pavlovianamente, respondem a qualquer argumento esgrimindo estigmas, exigindo o silêncio dos interlocutores que pensam diferente, quando não seu extermínio.
Se não pudermos construir espaços de debate político mais esclarecido, nossa democracia corre sério risco. O temor da mídia de desaparecer (mesmo com a tibieza do PT em colocar na agenda sua regulação, além do governo assegurar recursos elevados na propaganda oficial), leva-a aspirar mais e mais, mirando, em escala nacional, os polpudos contratos que tem em São Paulo, bem como alguma forma de regulação às avessas, que atinja as vozes da esquerda que teimam em existir na internet, hoje ainda só atingidas por algumas ações judiciais.
Para a esquerda há, também, uma dimensão prática. Se seu horizonte, com todas as diferenças que possam existir em seu campo, envolve a defesa dos direitos do mundo do trabalho e a soberania nacional, o que esperar das alternativas colocadas face a uma eventual remoção de Dilma? Um governo Temer, com Serra ministro da Fazenda, é um golpe imediato no marco regulatório do Pré-Sal e o caminho aberto para a retomada de uma alternativa econômica centrada na redução do custo do trabalho, tal como na década de 1990, que hoje se expressa na defesa da terceirização.
Novas eleições, em seguida à cassação da chapa Dilma-Temer pelo TSE, ou a alguma forma de impeachment duplo, conduziriam certamente à vitória de Aécio, em meio a intenso bombardeio midiático, explorando a humilhação do processo de defenestração do PT, e ao efeito recall que hoje beneficia o traidor da memória de Tancredo. E Aécio sabe-se bem o que hoje representa.
Alguns setores da extrema esquerda, eivados de um mecanicismo pueril, imaginam que a derrubada de Dilma levaria a um confronto mais aberto com a direita, favorecendo a luta dos trabalhadores. Além do viés autoritário dessa perspectiva, que toma a democracia apenas como um instrumento, não uma conquista dos trabalhadores e um valor estratégico, ela negligencia as dimensões simbólicas e institucionais do processo político. Um governo que se estabeleça após uma eventual remoção de Dilma vai dispor de enorme sustentação empresarial e midiática para aprofundar medidas dirigidas à redução do custo do trabalho. Ele facilitaria a odiosa perseguição a Lula, em andamento, e inauguraria anos de regressão, contra os trabalhadores, não sua afirmação.
Nem toda a extrema esquerda é tão tosca. Por isso, espera-se que esteja alerta à defesa da democracia, não obstante o combate à política econômica em curso. Sua coerência na defesa da democracia é que pode habilitá-la como alternativa ao PT, não o flerte com intenções golpistas da direita.
Há muito a corrigir no governo Dilma e no PT. Todavia, impedir sua remoção neste momento é tarefa fundamental da esquerda e dos movimentos sociais. Até para melhor combater o ajuste fiscal em sua dimensão conservadora, cobrando devidamente a conta do próprio governo e criando condições para um novo começo. Mais que tudo, é crucial para a democracia brasileira. Por isso, é preciso ir às ruas e combater nas redes – evitando, contudo, falar apenas para o mesmo campo. Não importa que as caminhadas domingueiras das hordas embaladas pela Globo reúnam mais gente. É preciso voltar às ruas com a energia e serenidade dos que sempre combateram ao lado do povo. Quando entrar setembro, espera-se que possamos ter atravessado este longo e tenebroso e inverno e vejamos a boa nova.