Por José Dirceu
O debate entre os presidenciáveis para estudantes estadunidenses mostrou que há consenso no que diz respeito à questão democrática. Os caminhos se bifurcam no que se refere às alternativas para se atingir o crescimento do país, gerar emprego e renda, reduzir as desigualdades, desmontar os mecanismos que levam à uma concentração monumental da renda.
No final de semana, presidenciáveis encontraram-se virtualmente num debate para estudantes da Universidade de Harvard e MIT. Ficou claro o que nos une e nos separa. Pelas notícias veiculadas esteve ausente do debate a desigualdade social e como superá-la.
Há sempre a unidade retórica contra o autoritarismo de Bolsonaro, mas pouco se fala do caráter militar de seu governo e do papel das Forças Armadas na nossa história recente. Relevante também foi a denúncia da politização das Polícias Militares e das ameaças à democracia, arroubos golpistas, ataques as instituições e tentativas de mobilizar suas milícias e bases contra o STF, o Congresso Nacional.
A questão democrática pode e deve ser um ponto de união entre os líderes que participaram: Ciro Gomes, João Doria, Eduardo Leite, Fernando Haddad e Luciano Huck. Mas não há como fugir da necessidade de desmilitarizar o governo, o GSI e devolver ao Ministério da Defesa seu caráter civil. E de reformar o Ministério Público e o Judiciário.
Outro ponto sempre presente é a educação e inovação, alvos constantes de ataques e desmontes pelo governo Bolsonaro. Haddad, que foi ministro da Educação, foi claro: Bolsonaro, ao atacar a cultura e a educação, ataca a liberdade e a democracia.
Obviamente, todos defendem o emprego, o crescimento e desenvolvimento, o meio ambiente –pontos importantes para reconstruir políticas e instituições que Bolsonaro e seu governo simplesmente destruíram como Ibama, Instituto Chico Mendes, Funai, Incra, Ancine, Funarte, os institutos de pesquisa, o IBGE e tantos outros. Mas é preciso definir como voltar a crescer e criar empregos.
Ciro e Haddad destacaram o papel decisivo e mais do que necessário e urgente do Estado e dos investimentos públicos. Na contramão do mundo, estamos insistindo na austeridade fiscal, no teto de gastos, regra de ouro e, agora, independência do BC e constitucionalização de regras fiscais recessivas e irracionais dado os ciclos econômicos e as crises sociais e políticas e, mesmo, naturais como a pandemia.
Doria e Eduardo Leite se posicionaram à direita, na linha ortodoxa e liberal do governo Bolsonaro dirigida por Paulo Guedes. A insistência no aumento dos juros para combater a inflação é um erro e o tempo tem provado que, além de não resolver o deficit e a dívida publica, derruba a demanda, a arrecadação com o subproduto do aumento dos gastos com os juros da dívida pública, num círculo vicioso.
É bom lembrar que seus partidos sustentam a política econômica de Guedes e Bolsonaro e lhe dão maioria no Congresso junto com o chamado centrão. No passado foram eleitores de Bolsonaro, alguns até mesmo no 1º turno. Essa observação vale também para os que falam em mudanças no modelo econômico, mas também em se aliar com esses partidos.
Perdemos, nos últimos anos, nosso papel no mundo e na América Latina. É urgente a retomada da política externa que nos levou ao G-20, aos Brics, à Unasul e à expansão do Mercosul; a ser um país exportador de tecnologia, serviços e capitais, ocupando nosso lugar como líder da integração sul-americana.
Nosso país corre o risco, com uma política de privatizações e abertura comercial e financeira, de se tornar apenas exportador de alimentos e minérios, reprimarizando nossa economia em prejuízo da indústria, com seu potencial dinâmico. Um crime, se consideramos que somos um dos países mais ricos do mundo em recursos naturais e industrializado, com um potencial econômico, social, ambiental e cultural, e com uma demanda reprimida em infraestrutura social e econômica.
As diferenças
O que pode nos unir é a agenda democrática. Mas, ao desdobrar os desafios do próximo governo para além de reverter o desmonte das instituições e políticas públicas, o que nos divide é como retomar o desenvolvimento e qual é o papel do Estado, como financiar as políticas públicas e atacar os principais problemas do Brasil: a desigualdade social, a pobreza e a miséria, tendo, do outro lado da mesma moeda, a concentração de renda e riqueza.
Financiar o Estado para quê? Para fazer uma revolução educacional e técnico-científica, para consolidar e expandir o SUS e a educação pública, a pesquisa cientifica, sem os quais não entraremos no século 21. Para distribuir renda e riqueza via reforma tributária e do sistema financeiro bancário. Aqui os caminhos se bifurcam. A direita liberal evita o tema tributário como meio de distribuir renda e riqueza.
A questão do papel do Estado nesse momento de crise mundial sanitária e social é determinante para vencer os problemas e distribuir os ônus desigualmente, conforme a renda de cada classe social. Temos que fugir do receituário neoliberal de apenas arrochar salários, cortar gastos sociais e investimentos públicos sem nenhuma política de emprego e renda (à exceção foi imposta pela pandemia), que levam ao agravamento da crise social pela recessão econômica e baixo crescimento estrutural que vive o Brasil.
A questão dos juros é básica para o país sair da crise de estagnação e inflação. Parte importante da renda nacional é apropriada pelo sistema financeiro-bancário e pelo rentismo. São R$ 500 bilhões em média de serviço da dívida pública, quando no mundo hoje os juros da dívida pública são negativos ou irrisórios –basta conferir pelos títulos de 10 anos do Tesouro dos Estados Unidos.
Nenhum país desenvolvido suportaria pagar os juros que pagamos pela nossa dívida pública. Os juros cobrados hoje ao consumidor e às famílias dobram o preço dos produtos e bens, levando ao subconsumo e travando a demanda da economia.
Fala-se muito em bolsa-empresário, equivocadamente, a partir dos financiamentos subsidiados do BNDES –banco de fomento saudável, com lucro, baixíssima inadimplência e com normas prudentes e rígidas. Mas não se diz nada sobre os R$ 315 bilhões de desonerações fiscais e mesmo com as centenas de bilhões de reais empoçados em fundos setoriais e no lucro de nossas reservas externas. Um colchão de segurança para aplicar em políticas anticíclicas e monetárias expansionistas frente à gravíssima crise humanitária e social que vivemos. Aliás, como acabam de fazer Biden e a UE.
Isso sem falar do papel dos bancos públicos –BB, CEF, BNB, BNDES– na expansão do crédito, no financiamento habitacional e no saneamento público, na infraestrutura social e econômica, na pesquisa científica técnica, numa nova política industrial no complexo de saúde e química, nas novas energias, na robótica, IA, 5G.
Toda política de desenvolvimento econômico (e não apenas monetária ou fiscal, cambial ou de juros) visa a criar bem-estar social, paz e segurança na sociedade, emprego e renda para todos. Não pode se limitar, como vem sendo feito, a produzir lucros, dividendos e renda do capital e da propriedade.
Assim, para além do desafio de derrotar Bolsonaro e não votar nele no 2º turno, como cobrou Fernando Haddad, de reconstruir as instituições e as políticas públicas em áreas decisivas como a externa, meio ambiente, saúde, educação e cultura, revogar a Lei de Segurança Nacional, os decretos armamentistas, despolitizar as PMs, é necessário enfrentar o flagelo do desemprego e da pobreza superando a escandalosa concentração de renda, principal causa do nosso não crescimento e desenvolvimento. Déficit público e dívida pública são consequências e não causas do nosso baixo crescimento e das crises cíclicas que vivemos nos últimos 30 anos.
O Brasil e nosso povo exigem e merecem uma revolução social, democrática e pacífica. Para isso, precisa de um governo que supere não só o bolsonarismo autoritário, obscurantista e fundamentalista, mas reforme as estruturais sociais e econômicas dando ao nosso povo trabalhador a participação na riqueza que cria bem-estar social, vida digna, paz e segurança.