Pesquisa desenvolvida para a tese de doutoramento em Antropologia Social do antropólogo Carlos Andrade Rivas Gutierrez, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, analisou a reflexividade evangélica a partir da produção crítica e da construção de projetos de vida de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). De acordo com o estudo, orientado pelo professor Ronaldo Rômulo Machado de Almeida, a crescente necessidade de participação em diversos âmbitos, além do religioso, tem exigido desse segmento a incorporação de novos saberes e competências. Esse repertório ampliado, por sua vez, tem transformado o modo como os evangélicos refletem sobre si mesmos e acerca de diferentes mundos, entre eles o da própria religião, o da política e o do trabalho.
Gutierrez conta que escolheu a IURD para investigar a reflexividade dos evangélicos porque a igreja apresenta características próprias. De acordo com o Censo de 2010, trata-se da quarta maior denominação evangélica do Brasil, ficando atrás, respectivamente, da Assembleia de Deus, Igreja Batista e Congregação Cristão do Brasil. “Além disso, a IURD conta com um amplo aparato midiático, composto pela Rede Record, Portal R7, estações de rádio e editora. Também possui forte ligação com o Partido Republicano Brasileiro (PRB), sendo que seus fiéis compõem a maior parte de dos quadros diretivos e dos parlamentares da legenda”, elenca.
Na pesquisa, o antropólogo concentrou a análise sobre a reflexividade dos evangélicos com base em três temas: política, empreendedorismo e gênero. “Apesar de fiéis e pastores de outras igrejas evangélicas também refletirem sobre essas questões, na Universal essa prática está muito mais sistematizada. Além da citada ligação com o PRB, a igreja promove, por exemplo, reuniões específicas e cursos para empreendedorismo e gênero”, explica Gutierrez. O pesquisador se refere a algumas iniciativas da IURD, como a realização de reuniões entre empresários e de cursos de gestão financeira. “A igreja também mantém um programa denominado IntelliMen, voltado a formar ‘homens melhores’. A ideia é buscar uma terceira via entre o macho e o ‘afeminado’, ou seja, um homem cavalheiro, gentil, polido, educado e respeitador”, relata Gutierrez.
Durante cinco anos, o autor da tese acompanhou essas e outras atividades patrocinadas pela Universal, especialmente em São Paulo. “Realizei mais de cem idas a diversos cultos da igreja, onde entrevistei fiéis, obreiros, pastores e bispos. As entrevistas mais longas e detalhadas foram com os membros, o que me possibilitou um amplo acesso a esse universo e a seus projetos de vida”, pontua o pesquisador. Segundo Gutierrez, por meio do método da “observação participante” ele pode presenciar diversos momentos em que os evangélicos produziam julgamentos, críticas e opiniões com relação à política, à religião, à estrutura de classes no Brasil, à desigualdade econômica, às diferenças entre gêneros e, consequentemente, aos planos que traçam para o próprio futuro, tendo em vista as condições objetivas em que vivem.
O pesquisador diz que encontrou dificuldades para obter as informações pretendidas. “A Universal é uma instituição muito fechada e que sofreu ataques sistemáticos nos anos 90, principalmente da mídia. Por isso, seus membros são bem desconfiados com relação a pesquisadores. Demorou um certo tempo até que eu pudesse conquistar a confiança de alguns interlocutores, que me ajudaram muito ao me colocar em contato com outras pessoas e também ao dividirem suas vidas comigo. De todo modo, privilegiei situações públicas, ou seja, abertas a quaisquer pessoas, em que pude observar in loco o processo de produção de críticas e julgamentos”.
No que se refere à dimensão da política, continua o autor da tese, a reflexividade dos evangélicos indicou uma preocupação destes em esconder o pertencimento à Universal em seus projetos políticos. “Mas, ao mesmo tempo, eles revelam a filiação institucional na presença de evangélicos. Há todo um cuidado para não utilizar termos e formas argumentativas consideradas, por eles, religiosas. Assim, para justificar suas posições, lançam mão de argumentos de outros campos, como do liberalismo clássico. Além disso, há uma forte recriminação aos militantes de esquerda, considerados, em muitos casos, como baderneiros e pessoas que não têm interesse em promover consenso, mas apenas de levantar bandeiras sem se preocupar com o aspecto prático da política”, pormenoriza Gutierrez.
No que toca ao mundo do empreendedorismo, indica a pesquisa, os membros da Universal costumam refletir sobre assuntos como capitalismo e desigualdade no Brasil. A crítica que fazem a esses temas é complexa, como aponta o autor da tese. “Ao mesmo tempo em que condenam o trabalho assalariado, associando-o à exploração, à miséria e à humilhação, eles percebem a saída dessa situação no próprio capitalismo, ao ocuparem a posição de empreendedores. Assim, ao construírem seus projetos de vida, percebem que a única forma de melhora possível, dado o seu contexto de vida, é criar o negócio próprio”, afirma.
Nesse exercício de reflexão, continua o antropólogo, os membros da Universal também fazem análises e considerações sobre a própria vida, o que inclui as humilhações sofridas e a necessidade de mudar o próprio destino, mais uma vez a partir de uma ação empreendedora. “A igreja contribui nesse sentido, ao trazer conhecimentos e ferramentas, como técnicas de gestão e de marketing. Os pastores recriminam os fiéis que ficam somente orando, recusando-se a aprender e a lançar mão de recursos administrativos para profissionalizar os seus negócios”, revela Gutierrez.
Por fim, a questão do gênero também faz parte das reflexões dos membros da IURD. Como já mencionado, muitos deles participam do programa IntelliMen. O autor da tese procurou analisar, a partir dessa experiência, como os homens produzem classificações em torno dos gêneros masculino e feminino. “Detive minha análise na construção, por parte dos evangélicos, de seus projetos de vida como homens, por meio de suas conversações internas. A conversação interna nada mais é do que uma forma de reflexividade em relação ao próprio ‘eu’. De certa forma, a tese buscou realizar uma ‘sociologia da mente’, isto é, quebrar a barreira entre as ciências sociais e a psicologia e compreender como, ao estruturar planos em nossas mentes, pensamos na expressão de nossa identidade e também nas condições em que estamos inseridos”.
No caso do gênero especificamente, acrescenta o pesquisador, há todo um relato da conversa interna dessas pessoas a respeito de suas desilusões como homens, a problematização de vícios e comportamentos, um desejo de mudança e a adoção de toda uma monitoração e reflexão sobre o que os leva a ser de determinado jeito e o que fazer para mudar. “Ainda na questão de gênero, há todo um esforço para deixar de ser rude e, na perspectiva desses atores, machista, ajudando a mulher em certas tarefas. O construir-se como um IntelliMen envolve ainda não olhar ou desejar mulheres, não se masturbar, não consumir pornografia, tornar-se disciplinado e aprender a ser um bom companheiro. Indubitavelmente, esse programa produz transformações no mundo da vida e também no cotidiano dessas pessoas, uma vez que elas abandonam círculos de amizade, rompendo contextos de sociabilidade, o que se configura todo um panorama novo para esses indivíduos. É interessante que a reflexão em torno do gênero revela que apesar de acreditarem que há características inatas no que concerne a homens e mulheres, percebem também como muitas coisas são imposições sociais e culturais, tais como a ‘cultura da macheza’, o que buscam transformar”, assinala Gutierrez.
Durante o doutorado, o pesquisador contou com bolsa de estudo concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Parte do programa de pós-graduação foi cumprida na École des hautes études en sciences sociales (EHESS), na França. Atualmente, Gutierrez se encontra naquele país, onde atua como pesquisador associado do Centre d’études des mouvements sociaux, da École (CEMS).
Texto originalmente publicado no site da Unicamp.