POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça
Acordei hoje com a notícia pouco alvissareira de que o exército, no mesmo passo em que exige para si, na intervenção no Rio de Janeiro, regras de engajamento robustas que lhe permitam fazer uso de força letal contra civis armados ou não, pretende “levar ação social às favelas”.
A lembrança à tenebrosa iniciativa das forças armadas americanas no início do conflito do Afeganistão é inevitável: jogavam à população civil merendas empacotadas em caixas amarelas, da mesma cor das bombas de fragmentação que despejavam sobre o país. Não raro, crianças vendo objetos amarelos ao solo, manuseavam-nos pensando tratarem-se de caixas com alimentos e, na sequência, morriam ou perdiam seus membros ao depararem-se com as bombas disparando tardiamente.
Quem faz ação humanitária em conflito armado não pode ser o mesmo ator que leva a efeito as operações militares. Não é à toa que princípio básico do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e de outras organizações que têm por missão reduzir o sofrimento de vulneráveis em situações emergenciais de conflito é o da neutralidade.
O exército, ao abraçar a campanha publicitária de Michel Temer, preferiu ser ator do conflito a se portar como intermediário neutro. Assumiu lado, politicamente e militarmente. O preço disso é enorme para a reputação da instituição, só comparável com o tamanho do risco a que se expôs, ao aceitar transformar comunidades em que residem milhares e milhões de civis em seu teatro de operações, com táticas próprias de conflitos bélicos.
Que o Rio de Janeiro carece, há tempos, de política consistente de segurança pública a enfrentar perturbações de baixa intensidade protagonizadas por bandos de traficantes armados em regiões de pobreza e ausência de estado, é inegável. Mas a falta dessa política não pode ser transformada numa questão de estratégia militar.
Ações militares em zonas de conflito e ações de segurança pública em regiões civis densamente povoadas necessitam de abordagens opostas. Enquanto as ações militares exigem uso de força extrema para debelar um inimigo igualmente disposto a uso máximo de violência, ações de segurança pública pressupõem força mínima, no cálculo da proporcionalidade com o risco de violação de direitos e garantias fundamentais.
As primeiras correspondem a atuação extraordinária a garantirem sobrevida ao estado ameaçado por risco absoluto; as segundas se inserem no legítimo uso do monopólio de violência para debelar condutas que ameaçam bens jurídicos sob tutela penal ordinária.
Usar força militar para emprestar eficiência à repressão penal é como usar um obus para matar um mosquito. Peca profundamente contra o princípio da proporcionalidade que deve orientar toda ação repressiva num estado de direito. Peca, também, contra esse mesmo princípio, quando deve orientar ações no campo bélico.
Peca contra o princípio da distinção, que, no direito internacional humanitário, exige separar alvos legítimos dos ilegítimos em ação armada. A população civil, quando não armada e vulnerabilizada ao meio das operações, é um alvo ilegítimo, devendo ser protegida. O princípio da necessidade militar não pode ser oposto à proteção obrigatória dessa população.
A exigência, por atores do exército, de regras de engajamento robustas, a permitirem o uso da força letal contra civis, é incompatível com qualquer política de segurança pública e corresponde a potencial violação das leis da guerra, expondo militares ao risco de prática de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade, coisa que nosso exército, que foi submetido a enorme esforço de profissionalização nos últimos anos, não merece.
Ainda temos tempo para refletir. De nada adianta comparar a situação nos morros do Rio de Janeiro a Porto Príncipe. Aqui, supõe-se, ainda temos um estado que se pretende funcional; lá, no Haiti, tínhamos uma missão militar com mandato internacional diante do reconhecimento da total falência do estado, a recomendar intervenção humanitária em situação de emergência complexa.
Não se pode querer aplicar, no seio de uma comunidade de civis carentes de políticas públicas, a lógica de terreno inimigo num conflito armado. Isso significaria o reconhecimento do colapso do estado e da imprestabilidade de sua constituição para enfrentar democraticamente os desafios que se colocam a governantes. Não é isso que brasileiras e brasileiros esperam, muito menos num ano eleitoral.