Em 1996, o delegado de Polícia Federal Roberto Jaureguiber Prel Júnior, através de um habeas corpus, conseguiu trancar uma ação penal em que ele era acusado de torturar Carlos Abel Dutra Garcia, – um crime que até hoje o único punido foi a própria vítima.
Na época, a então juíza da 13ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, Maria Helena Soares Reis Franco, já falecida, advertiu-o com um recado: “O senhor livrou-se da Ação Penal, mas jamais se livrará da dúvida que o acompanhará o resto da vida. Gostaria de vê-lo provar a inocência no curso da ação. Não livrar-se dela deste jeito”.
Recordo-me deste fato, do qual o atual juiz federal Alexandre Libonati de Abreu é testemunha, agora que o Senado Federal acaba de rasgar a Constituição que todos os senadores juraram cumprir.
Derrubaram uma presidente eleita com 54 milhões de votos e entregaram a Presidência da República a Michel Temer, sobre o qual recaem diversas dúvidas jamais por ele dirimidas a contento.
Tal como o delegado, Temer nunca foi condenado, mas também jamais esclareceu de forma clara e límpida acusações que lhes foram feitas, como ficou demonstrado na série de matérias que o Diário do Centro do Mundo e o Blog Marcelo Auler mostraram recentemente com relação ao Porto de Santos.
Mais ainda. Ao ser confirmado no cargo de presidente por meio de um golpe parlamentar, já que não se conseguiu provar que a presidente afastada, Dilma Rousseff, cometeu qualquer crime de responsabilidade, Temer passa a ter uma espécie de salvo conduto com relação às recentes acusações que lhes foram feitas.
Na presidência, só poderá responder por crimes cometidos durante o seu mandato, que oficialmente começa nesta quarta-feira, 31 de agosto.
Com isso, o Congresso está trocando, pelo golpe, uma presidente jamais acusada de desonestidade ou corrupção por um político que teve seu nome envolvido em escândalos passados e presentes. Basta ver que a vice-procuradora Geral da República, Ela Wiecko de Castilho demitiu-se do cargo de confiança que ocupava simplesmente por ter desagradado a Rodrigo Janot ao dizer o que todos já sabiam:
“Eu estou incomodada com essas coisas que estão acontecendo no Brasil. Não me agrada ter o Temer como presidente. Ele não está sendo delatado? Eu sei que está”.
Temer nunca foi processado. Mas também jamais se livrou das sérias suspeitas de envolvimento em ilícitos. Sobre ele recaem dúvidas sérias.
As primeiras delas com relação às propinas pagas no Porto de Santos, quando a Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP) era presidida por um afilhado seu, Marcelo de Azeredo (1985-1988).
O atual vice-presidente em exercício, ao contrário da presidente que ele ajudou a derrubar, não teve coragem de sequer prestar um depoimento como testemunha na Polícia Federal.
Fugiu dos questionamentos, dos esclarecimentos e deixou permanecer a dúvida. Esta, como disse a juíza ao delegado na ditadura, permanecerá para sempre.
Dilma foi capaz de enfrentar por mais de 14 horas o debate com 81 senadores, mostrado ao vivo e a cores pela televisão. Já Temer, quando deputado federal e presidente da Câmara, convidado pelo delegado federal Cássio Nogueira a prestar um depoimento, na condição de testemunha, em dia, hora e local que ele mesmo indicasse, jamais respondeu. Faltou-lhe coragem, como em tantas outras ocasiões. É o mesmo homem que fugiu da Olimpíada com medo de vaias.
Deixou de lado o espírito cívico de, pelo menos, ajudar a esclarecer uma suspeita de desvio de verbas públicas e corrupção.
Se ficou livre de um julgamento por suspeita de envolvimento em corrupção, deve isso a dois procuradores da República – Geraldo Brindeiro (2001) e Roberto Gurgel (2011) – e a omissão do próprio Supremo Tribunal Federal que arquivou os pedidos de investigação que pudessem esclarecer o envolvimento do então deputado.
Não apenas isso. Enquanto seu afilhado político, Marcelo de Azeredo, foi pego pela Receita Federal que confirmou as denúncias feitas em 2 000 pela ex-companheira dele Érika Santos, Temer, graças às suas relações políticas com todos os governos do período da redemocratização do país, não teve analisada a sua variação patrimonial, que não foi pequena, diga-se.
Ao ser confirmado em um cargo para o qual não foi eleito, terá outros benefícios. Na cadeira de presidente não poderá ser investigado pelas recentes denúncias que surgiram ao longo das delações premiadas da Lava Jato. Não foram poucas.
Foi acusado de beneficiar-se das obras de ampliação do Aeroporto de Guarulhos, denúncia sobre a qual existem investigações que correm em segredo.
Também Marcelo Odebrecht confessou que, a pedido do então vice-presidente, em um jantar no Palácio Jaburu, repassou R$ 10 milhões ao PMDB, sendo R$ 4 milhões para seu atual ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha e o restante para o presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), Paulo Skaf, então candidato do PMDB ao governo do estado. Tudo dinheiro não contabilizado..
Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, denunciou Michel Temer (PMDB), por lhe pedir recursos ilícitos para a campanha de Gabriel Chalita (PMDB) à prefeitura de São Paulo, em 2012.
Outros a apontarem-no como envolvido na corrupção foram o ex-senador Delcídio do Amaral e o empresário Julio Camargo, que intermediou negócios bilionários na Petrobras e confessou ter pago propina a integrantes do PMDB, entre os quais o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Delcídio apontou Temer como o “grande patrocinador” da ida de Jorge Zelada para a área internacional da Petrobras, que seria o elo do PMDB no esquema de corrupção.
Ao rasgar a Carta Magna, o Senado colocou no lugar de uma mulher honesta e escolhida pelo voto popular um cidadão sobre o qual recaem suspeitas sérias. E que já está cercado de ministros e assessores sob os quais as suspeições também são grandes.
Tudo com respaldo de parte de uma população que foi às ruas pedir o fim da impunidade e da corrupção.
Estaremos dando início a mais um período obscuro na democracia que conquistamos com muita luta e muito sangue. Apertem os cintos.