O velho normal reaparece e isso é muito bom. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 17 de junho de 2020 às 17:21
Jair Bolsonaro. (Evaristo Sá/AFP)

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

Em meio à escalada de mortes causadas pela incúria do governo federal – a causa central é esta e não a pandemia – e diante do crescente desespero popular com o contágio da miséria e do desespero, há uma mudança significativa na conjuntura. Bolsonaro perdeu o domínio da agenda do caos.

Até semanas atrás, bastava uma cavalgada presidencial em frente ao seu gado, arreganhos golpistas nas calçadas de um quartel ou uma nota ameaçadora de um inútil fardado para que céus e terras tremessem. Bolsonaro governava desestabilizando a sociedade e aumentando tensões, o que incentivava maltas fascistas por todo o país. Em uma linha, a disseminação do caos nas ruas e redes era a chave essencial para sua manutenção no poder.

MAS NA MANHÃ DESTA QUARTA, ao chegar em Palácio, o psicopata afirmou o seguinte: “Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”.

Ninguém mais tenta interpretar o que seria “o devido lugar” . Um golpe? Uma sargentada? O fechamento dos poderes?

AS SUCESSIVAS DERROTAS que o governo sofreu nos últimos quinze dias fizeram murchar o tamanho do porrete que anunciava possuir.

Vamos lembrar os fiascos oficiais recentes: desmonte da falsificação dos números da Saúde, recuo na recriação da aviação do Exército, devolução pelo Congresso da MP dos reitores, fim da transferência de recusrsos do bolsa-família para a publicidade, posições altivas do STF nas investigações de fake news, de terrorismo fascista e de tentativa de constitucionalização de intervenção militar, tiro no pé ao ensaiar o enquadramento de um chargista na LSN, respostas atravessadas da diplomacia chinesa e outras. O quadro se completa, no plano global, com a perspectiva crescente de derrota de Donald Trump nas eleições americanas. Não há dúvidas: as marcas principais da administração Jair Bolsonaro são o fracasso, a vergonha e o vexame.

SIM, CLARO, ELE TEM A CANETA e pode fazer barbaridades com ela, como vem fazendo. O auxílio emergencial não chega a todos, o crédito não alcança pequenas e médias empresas e verbas vitais para a Saúde seguem bloqueadas. Mas a possibilidade de o governo fazer política de verdade acabou.

Bolsonaro segue com seu colchão de popularidade ao redor de 25% da população. Isso se deve muito à ausência clara de alternativas aos olhos das maiorias. Mas essa aprovação está em queda.

COM ISSO, A AGENDA DO CAOS MURCHOU. A agenda que desnorteava oposições, desequilibrava sentidos e criava no país um eterno clima de barata-voa embatumou. A luta política está se ajustando aos seus parâmetros – digamos – normais. O velho normal está voltando, com a percepção cartesiana de correlação de forças, disputa de hegemonias, uso de tática e estratégia, formação de alianças e frentes etc. por parte de quem vai à luta. Governo é governo, patrão é patrão, trabalhador é trabalhador e fascista não é gente. Em uma frase, a luta política civiliza-se e readquire lógica.

Tenho escrito há mais de um mês que o enfrentamento político na sociedade vive uma situação de empate. Lancei mão até – de maneira torta – do conceito gramsciano de “empate catastrófico”, no qual nenhum dos atores em jogo teria condições de avançar ou dar um lance definitivo sobre outro, criando um clima insuportável de tensões.

POIS O QUADRO PARECE ESTAR MUDANDO com a volta do velho normal. O governo se isola e recua a olhos vistos. A direita tradicional está se articulando a mil, por fora dos partidos. Trata-se de gente como FHC – que volta ao jogo aos quase 90 anos! – Tasso jereissati, Clóvis Carvalho, José Anibal, Armínio Fraga, Edmar Bacha, Gilmar Mendes, Alexandre Moraes, Celso Mello e outros, em linha com a Globo e parte da grande mídia. O traço comum: querem mudar a situação, sem mudanças econômicas substantivas. Expressam setores do capital financeiro e produtivo que começam a perder dinheiro e a ver o Boçal como estorvo aos negócios.

Parte da esquerda – aquela que vive do passado e do vitimismo – fecha-se em bunker e decide ir para a arquibancada reclamar da vida. Outros setores desenvolvem heroicamente atividades incessantes nas redes e nas ruas – algo perigoso em tempos de curva ascendente de contágio. O movimento sindical se reorganiza e novos personagens aparecem. Com todas as dificuldades, buscam entrar em campo.

Os peões se movem. Em meio ao morticínio, movimentos importantes estão sendo feitos. O fundamental é: reabriu-se a disputa política diante do fascismo. Bem vindos ao velho normal.