O vinho de Bolsonaro e o vinho do gênio Oscar Guglielmone. Por Moisés Mendes

Atualizado em 11 de julho de 2021 às 10:19
O vinho de Bolsonaro e o vinho do gênio Oscar Guglielmone. Por Moisés Mendes. Foto: Reprodução/Blog

Publicado originalmente no blog do autor

O melhor vinho do Brasil nunca será um Miolo, e não porque tenha associado o produto às gentilezas da família gaúcha dona da marca dirigidas a Bolsonaro.

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Um Miolo é, desde antes de ser o vinho de Bolsonaro, apenas um vinho médio entre os medíocres, o que às vezes é pior do que ser um vinho assumidamente ruim, se o produto for confrontado com seu preço.

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O melhor vinho do Brasil se chamava Velha Capital e era produzido em Viamão, na Adega Medieval, dos anos 70 aos 90, por um gênio chamado Oscar Guglielmone.

Eu conheci Guglielmone em 1993, quando ele tinha 67 anos. Foi uma descoberta tardia e ao acaso. Eu estava no aeroporto no Rio e comprei uma Folha de S. Paulo.

Li tudo o que eu achava relevante, até chegar, para encher o tempo, à coluna de Luiz Horta, enófilo respeitado, que informava: a Adega Medieval ainda faz os melhores vinhos do Brasil.

Li aquilo e fiquei impressionado. Horta havia me dado uma pauta. Cheguei e liguei logo para a adega, que eu conhecia vagamente, porque o vinho de Guglielmone era uma raridade, não estava em qualquer prateleira de qualquer lugar.

Me apresentei como repórter de Zero Hora, e Oscar Guglielmone me respondeu como se sentisse ofendido:

– Eu faço o melhor vinho do Brasil? E tu só descobriste isso lendo a Folha?

E passou a se queixar do abandono de todos, incluindo a imprensa gaúcha. Disse que era mais valorizado fora do Estado e que não queria conversa. E desligou o telefone.

No dia seguinte, me ligou um pouco menos irritado. Falou que andava sem muita paciência e desesperançoso, pediu desculpas e me convidou:

– Apareça aqui amanhã.

Fui, ele me recebeu meio vacilante, como se testasse meu interesse por vinhos, me mostrou a cave escura ao lado de um filho, foi me testando, relaxando e disse:

– Então vamos conversar.

Era fim de tarde de um dia de inverno, com temperatura em torno de 10 graus. Sentamos na cozinha, ao lado do fogão à lenha, numa mesa com pão d’água, queijo e linguiça.

Bebemos todos os seus vinhos tintos e brancos de quase todas as variedades, Nebbiolo (sua especialidade), Merlot, Cabernet Franc, Cabernet Sauvignon, Gamay, Chardonnay, Riesling. Eu nunca havia bebido nada parecido.

Aquele homem magro, de barba branca, amargo no início do encontro, foi relaxando e se revelando, contando sua história. E nós fomos comendo linguiça e queijo e bebendo, ao lado do fogo, até perto da meia-noite.

Chamei o motorista do jornal, que havia me levado, e saí dali certo de que tinha vivido uma experiência única.

O dono da casa misturara vinho com literatura e filosofia, e aquela conversa, que com outro personagem poderia parecer pedante e sem graça, havia sido um Merlot de sabedoria, vivacidade e humor.

Guglielmone andava chateado porque as tardes de degustação na adega, nos fins de semana, tinham cada vez menos gente. Havia desistido dos parreirais, porque davam muito trabalho, e comprava uvas da Serra para esmagar em Viamão.

Escrevi e publiquei uma página no caderno de Economia de Zero Hora com o resultado da conversa daquela noite gelada.

Era uma edição de domingo, que sempre circula a partir da tarde de sábado. No fim do domingo, eu estava no plantão no jornal e ele me ligou:

– Tu criaste um problemão. A casa encheu de gente, nunca vi tanta gente e tantos carros. Saíram agora daqui.

E assim passaram a ser os fins de semana na Adega Medieval. Lotavam a adega em encontros para degustação do melhor vinho do Brasil.

Um dia ele ligou de novo. Essa foi a frase, exatamente essa, que me comoveu:

– Tu me deste um presente no fim da minha vida.

Uns meses depois, o jornalista João Batista Marçal, morador de Viamão, me telefonou com a notícia:

– Mataram o Oscar na casa dele.

Gugliolme foi morto em setembro de 1993 por um tiro disparado por um ex-empregado, com quem tinha desavenças.

O gênio de Viamão, que poucos gaúchos sabiam que era gênio, mas quem conhecia vinho sabia que era, havia morrido quando sentia que poderia se reerguer.

Oscar Guglielmone fazia o melhor vinho do Brasil, com personalidade, sem truques e sem burlar a identificação das variedades.

Em 2017, um grupo de apreciadores de vinho reuniu-se em São Paulo. Cada um levou garrafas de vinhos de Guglielmone, que também usava o nome dele nos rótulos.

Quase todos os convidados tinham vinhos da Medieval guardados em casa. E todos os vinhos que beberam naquele almoço estavam magicamente íntegros.

Estavam naquelas garrafas e foram apreciados por admiradores do alquimista de Viamão, quase 40 anos depois de produzidos, os que ainda eram, em 2017, os melhores vinhos do Brasil.

Oscar Guglielmone estaria hoje com 95 anos, completados no dia 7 de junho.

(Abaixo, um link para o site do enófilo Didu Russo, com um texto e depoimentos comoventes sobre Guglielmone, coletados nesse almoço.)

https://www.didu.com.br/2017/10/os-vinhos-de-oscar-guglielmone-ainda-vivos-e-como/