Ohio: o medo de voltar para casa após um desastre apelidado “Chernobyl 2.0”

Menos de uma semana após o acidente com um comboio que transportava uma carga tóxica, os residentes na cidade East Palestine, no estado de Ohio (EUA), interrogam-se se já é seguro regressar a casa.

Atualizado em 13 de fevereiro de 2023 às 19:30

Menos de uma semana depois de um trem que transportava materiais perigosos ter saído dos trilhos no nordeste do Ohio, ardido em chamas e alimentado o medo de uma “potencial explosão”, as autoridades garantiram aos moradores que foram forçados a abandonar as suas casas que já era seguro regressar à cidade. Mas Maura Todd não está convencida.

As dores de cabeça e náuseas que a sua família teve na sua casa no fim-de-semana passado e o odor forte que a faz lembrar uma mistura de removedor de verniz e pneus queimados disseram-lhe o contrário. No sábado, planejou fazer as malas e mudar-se da East Palestine, Ohio, para Kentucky com a sua família e os seus três Schnauzers miniatura – pelo menos temporariamente.

“Assisti a todas as entrevistas e não ouvi nada que me faça pensar que se trata de uma decisão baseada em dados”, diz Maura Todd, 44 anos, ao The Washington Post. “Não sentimos que tenha sido compartilhada informação suficiente​.”

Após o descarrilamento, funcionários federais e locais garantiram repetidamente aos residentes que a qualidade do ar era segura e que o abastecimento de água não estava contaminado. Mas mais de uma semana após o trem do Sul de Norfolk descarrilar – causando uma explosão que lançou chamas para o ar e uma nuvem de fumaça que cobriu algumas partes desta localidade e que, para evitar uma explosão, também obrigou as autoridades a libertar uma dose de substâncias químicas que eram transportadas – os habitantes disseram ao The Post que ainda não tinham visto uma lista completa do que estavam a bordo quando este perdeu o curso.

Assim, sem muita informação, os residentes e peritos disseram ao The Post que questionam se é seguro regressar às suas casas uma semana depois de os poluentes terem corrido para os riachos locais e terem sido lançados no ar. Em alguns locais, peixes mortos tinham sido avistados, um funcionário do estado confirmou e os moradores que regressavam às suas casas numa cidade vizinha da Pensilvânia foram aconselhados por autoridades a abrir as suas janelas, ligar ventiladores e limpar todas as superfícies com água sanitária diluída.

“A maior questão neste momento é o que, se alguma coisa, ainda está a ser libertada do local, acima de tudo”, diz Peter DeCarlo, um professor de saúde ambiental da Universidade Johns Hopkins. “Se ainda existem emissões químicas residuais, então isso ainda representa um perigo para as pessoas que vivem nesta área”.

Um grupo ambiental a remover peixes mortos a jusante do local do descarrilamento do comboio REUTERS/ALAN FREED

O acidente

Eram 21 horas do dia 3 de Fevereiro quando 50 vagões de um trem do Sul de Norfolk, que ao todo tinha 141, descarrilaram, causando um incêndio perto dos reagentes perigosos, que mantiveram os bombeiros afastados durante dias. O descarrilamento, que não causou vítimas, foi provavelmente causado por problemas mecânicos num dos eixos dos vagões, disse o National Transportation Safety Board (NTSB).

O incidente causou mais preocupação quase 48 horas após ter ocorrido, quando a alteração das condições num vagão ferroviário fez com que as autoridades alertassem para uma possível “grande explosão”. As autoridades conduziram na segunda-feira uma “libertação controlada” de cloreto de vinila para evitar uma explosão, e na quarta-feira autorizaram os residentes a regressar.

Segundo Eric Whitining, que mora nesta região, há noites em que o ar cheira a “piscina com excesso de cloro” e os seus olhos ardem. Este morador regressou à sua casa no dia em que as autoridades suspenderam a ordem de evacuação. Eric sublinha que não pode mudar a sua família de cinco pessoas para longe de casa e, por isso, diz que não tem outra escolha senão ficar e seguir as instruções das autoridades.

“Para uma cidade pequena, temos de confiar neles, porque o que mais podemos fazer?”, questiona. “Temos de confiar que eles não nos estão a mentir.”

Mais de mil pessoas – residentes, empresários locais, e qualquer pessoa que possa ter sido prejudicada pela exposição – foram afetadas,  de acordo com dados contidos em um dos quatro processos que os residentes de Ohio e da Pensilvânia instauraram contra Norfolk Southern.

Essa demanda, instaurada na quarta-feira (8)  por Ray e Judith Hall, residentes de East Palestine,​ alega que a negligência da Norfolk Southern levou ao descarrilamento. A ação, que pleiteia reparação financeira, acompanhamento médico e muito mais, alega que os residentes foram expostos a substâncias tóxicas e ocasionaram custos devido à evacuação e sofreram “grave angústia emocional” e ansiedade.

O porta-voz do Norfolk Southern, Michael L. Pucci, disse que a ferrovia não podia comentar o litígio. Para já, a empresa criou um “centro de assistência familiar” e está  reembolsando os residentes que fugiram das suas casas, embora Pucci tenha-se recusado a dizer quantas pessoas incluíram ou por quanto tempo a ajuda irá continuar.

Uma vista aérea mostra uma nuvem de fumaça, após um descarrilamento do comboio que obrigou as pessoas a abandonar das suas casas na cidade de East Palestine, no Ohio REUTERS/ALAN FREED

Moradores querem detalhes sobre a carga tóxica

A Agência de Protecção Ambiental (EPA) afirmou que os principais produtos químicos envolvidos eram cloreto de vinila, os seus subprodutos fosgênio e cloreto de hidrogênio (ácido clorídrico), acrilato de butila e outros. Mas nem a EPA nem a NTSB publicaram uma lista completa do que o trem transportava.

Perguntado se Norfolk Southern divulgaria a lista, Pucci remeteu a pergunta do The Post para o NTSB, que está investigando o descarrilamento. Um porta-voz do NTSB disse que a lista faria parte do documento da agência sobre a tragédia, que é normalmente publicado após meses. A porta-voz da EPA, Rachel Bassler, disse que a agência tinha listado as substâncias químicas que “representavam os impactos mais agudos para a comunidade”.

Alguns peritos disseram que a monitorização do ar pela EPA deveria ter sido feita com dispositivos mais sofisticados e que não estava claro se a agência tinha dados suficientes quando disse aos residentes que o ar era seguro. “Em qualquer destas situações, a EPA vai monitorar com as ferramentas têm à sua disposição, mas isso não significa necessariamente que essa seja a melhor forma de monitorar”, disse DeCarlo de Johns Hopkins. “Os monitores portáteis que estavam a ser utilizados são adequados, mas muitas vezes não têm a sensibilidade necessária ou a especificidade química para avaliar realmente se existe um risco”.

“A quantidade de produtos químicos que foram derramados e queimados não desaparece simplesmente”, disse o morador Nate Velez.

Judith Enck, uma antiga administradora regional da EPA, concordou. Ela considera que a EPA foi “inconsciente” quando não divulgou publicamente a lista de todos os químicos que se encontravam nos comboios. A agência, disse ela, deveria lançar um website que mostrasse os resultados dos testes “de uma forma que seja fácil para o público compreender”.

“No mínimo, as pessoas deveriam saber o que estava em cada vagão do trem”, acrescentou Judith Enck. “Este é um momento em que se precisa da máxima transparência”.

Imagens de Drone mostram o descarrilamento do comboio de mercadorias REUTERS/NTSBGOV

Jogar pelo seguro ou correr o risco

A EPA forneceu os seus dados de monitoração do ar a agências de saúde antes de permitir que os residentes voltassem, adiantou Rachel Bassler, porta-voz da agência. Desde que o incêndio foi extinto, o controle do ar não detectou os níveis de substâncias químicas perigosas, acrescentou.

Cerca de 450 pessoas inscreveram-se para que o ar nas suas casas fosse rastreado, uma opção oferecida pela Norfolk Southern e que conta com o apoio da EPA. Desde sexta-feira à noite, 105 casas tinham sido rastreadas e não foi detectado cloreto de vinila ou cloreto de hidrogênio em nenhuma delas, disse Rachel Bassler.

Embora o cloreto de vinila seja cancerígeno, os seus piores efeitos foram geralmente documentados após uma exposição prolongada ou em grande volume, de acordo com relatórios federais. “A exposição a curto prazo a baixos níveis de substâncias associadas ao descarrilamento não representa um risco de saúde a longo prazo para os residentes”, assegurou a Norfolk Southern num documento que foi distribuído aos habitantes com respostas a perguntas frequentes.

No entanto, a questão é se foram soltos contaminantes suficientes para causar efeitos a longo prazo. Nate Velez, 31 anos, cuja casa e negócio estão situados perto da linha do trem, disse que a sua família não planeja voltar para casa, que ainda cheira a químicos, e Velez disse que a sua esposa, uma enfermeira, “não quer correr quaisquer riscos” com a quantidade de químicos tóxicos que foram dispersos.

“Estamos a contar com os nossos cinco sentidos porque [as autoridades] não nos dizem grande coisa”, disse moradora Maura Todd.

“A quantidade de . . . produtos químicos que foram derramados e queimados não desaparece simplesmente”, diz. “Não creio que haja qualquer forma de conhecer o efeito total até que o tempo suficiente passe. E isso simplesmente não vale o risco.”

Maura Todd e a sua família foram de carro da East Palestine para Lexington, a 5 de Fevereiro, para se abrigarem com a família até que as autoridades considerassem a cidade suficientemente segura para que os residentes regressassem. Mas quando isso aconteceu, Maura considerou que iria primeiro visitar o local e verificar a actual situação antes de um possível regresso para a cidade.

Assim, no domingo, Maura Todd e o seu marido, que passaram a noite num hotel em Salem, Ohio, depois de regressarem do Kentucky, conduziram até à sua casa na East Palestine, com máscaras na cara, para fazer uma avaliação. O seu filho e os seus três cães ficaram em Lexington. E desabafam: “Estamos a contar com os nossos cinco sentidos porque [as autoridades] não nos dizem grande coisa”.

Publicado originalmente no jornal português “O Público”

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