Da Padaria Quintas do Morumbi
Encontro a voz rouca das ruas, para usar a ótima expressão de FHC, na padaria em frente de casa. Sinto falta dela, em Londres. Não há nada parecido com nossas padarias lá. Quando venho a São Paulo, meu café da manhã é sempre na padaria.
Nela sei o que se passa na cabeça dos brasileiros.
O gerente Nelson, por exemplo. Ele está nervoso, apreensivo. Irritado. Com tudo.
Com a roubalheira dos políticos.
Com o salário que Datena vai ganhar na Record.
Com o número de carros na cidade.
Com o avanço dos prédios sobre a região da padaria.
Com a Marcha da Maconha.
Com a maneira como Paco, o espanhol, se refere ao Barcelona e ao Corinthians.
Com a televisão.
Ele expõe seu ponto de vista a um policial que toma um café ali.
“A televisão é pra mostrar coisas boas. Coisa ruim você vai buscar nos jornais, nas revistas e na internet”, diz ele. “Tá tudo errado. Não é, Doutor Paulo?”
Não sei por que, sou tratado como Doutor Paulo. Talvez porque me sente sempre com um livro na padaria, e isso remeta a doutores.
Aquiesço, mas Nelson não precisa disso para continuar.
“O Doutor Paulo é um repórter internacional. Mora nos Estados Unidos”, diz ele ao policial. “A imprensa lá não é diferente, Doutor Paulo?”
Ele aponta o revólver do policial.
“Se ele matar um bandido passa 90 dias num lugar pra receber tratamento mental”, diz Nelson. “Pra que o revólver, então?”
O policial confirma.
“Eles fazem isso pra gente levar os bandidos de pé pra cadeia”, avisa.”Mas os policiais não tão nem aí. Matam mesmo.”
Pergunto se ele já passou pelo centro de tratamento psicológico. Ele diz que sim. Mas esclarece que foi dispensado do tratamento. Ele nos conta que naquela mesma manhã uns bandidos fizeram um roubo ali na Vila Sônia. A polícia os cercou e eles tentaram escapar correndo pelos trilhos do metrô da região. Foram pegos.
Terminado o café, o policial se prepara para retomar suas atividades de proteção aos paulistanos.
Antes que ele saia, Nelson explica por que tanta coisa ruim acontece no Brasil.
“Temos só 500 anos”, diz ele.
Mais uns 500 e estaremos prontos, penso.
E então reflito que sentirei falta da padaria, e da voz rouca das ruas que se esparrama por ela, quando voltar a Londres.