Por Danilo Vital
Para que a Justiça Eleitoral tenha ferramentas adequadas e eficazes para combater a desinformação sem desrespeitar princípios constitucionais e as normas interamericanas sobre direitos humanos, o Brasil precisa fazer uma reforma legal, com debate o mais amplo possível entre as partes interessadas e especialistas.
Essa foi a recomendação feita pela missão de observação eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em relatório preliminar enviado ao Tribunal Superior Eleitoral após o segundo turno das eleições presidenciais. O órgão, que elogiou o empenho e o sucesso do país no pleito, dedicou um tópico ao tema “desinformação e liberdade de expressão”.
A missão classificou a disseminação massiva de desinformação como “um dos desafios mais complexos enfrentados pelo sistema eleitoral do Brasil” neste ano e destacou o crescimento de 1.671% no número de reclamações recebidas pelo Tribunal Superior Eleitoral sobre o uso de fake news para influenciar o eleitorado.
Como esse enfrentamento gerou impacto relevante na liberdade de expressão do brasileiro e nos discursos políticos feitos no país, a OEA usou a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema para claramente deixar um alerta.
A corte já reconheceu a liberdade de expressão como fundamental para a preservação da democracia, embora admita que ela possa ser tolhida para enfrentar a desinformação. No entanto, qualquer regulamentação nesse sentido deve atender a requisitos de legalidade, necessidade e proporcionalidade.
“A existência de um marco jurídico claro e robusto contra a desinformação em matéria eleitoral garante a segurança jurídica e fortalece a eficácia das respostas de todas as partes envolvidas”, diz trecho do relatório da OEA. Até o momento, esse marco não existe.
O que aconteceu no TSE
A recomendação de usar o processo legislativo para criar ferramentas de combate à desinformação contrasta com o que o TSE precisou fazer para evitar que a disseminação massiva de fake news desequilibrasse a campanha presidencial.
Durante toda a corrida eleitoral, a corte julgou representações por propaganda irregular com um rigor turbinado pela atualização de conceitos e estratégias de desinformação. O TSE ainda fez ajustes normativos de última hora para dar conta do mundo real.
No principal deles, editou resolução para combater a explosão das fake news no segundo turno. Foi quando o tribunal ampliou sensivelmente seu poder de polícia — a possibilidade de controlar, evitar e limitar toda atividade que possa afetar de forma negativa a coletividade.
Dessa maneira, o TSE ganhou a possibilidade de, de ofício, estender decisões de retirada de conteúdo a outras URLs e postagens que não necessariamente foram alvos de representação na Justiça Eleitoral, além de acionar diretamente as redes sociais, que ficaram sob risco de punições mais custosas, calculadas por hora de descumprimento.
Essa resolução teve a constitucionalidade contestada pela Procuradoria-Geral da República, mas acabou mantida liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal.
As críticas à atuação do TSE alcançaram o ápice em 20 de outubro, quando a corte referendou a decisão de desmonetizar canais bolsonaristas propagadores de desinformação e adiar a estreia de um documentário cujo conteúdo sequer era conhecido — o que, segundo especialistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, não configurou censura.
Esse cenário começou a ser formado ainda em 2018, quando eleitores, candidatos e a Justiça Eleitoral foram apanhados de surpresa por estratégias digitais que, mais tarde, geraram risco de cassação da chapa do presidente Jair Bolsonaro.
No ano seguinte, o STF começou a investigar a existência de uma organização financiada por empresários com o objetivo de aplicar essas estratégias para fragilizar as instituições brasileiras, em troca de capital político.
A possibilidade de uma crise de confiança na democracia fez o TSE passar os últimos quatro anos formando um enorme cerco para proteger a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Toda essa preparação, porém, foi insuficiente para evitar que a desinformação e a polêmica em torno dela se intensificassem nas eleições deste ano.
Melhor por lei
A forma como o TSE direcionou seus esforços finais na luta contra as fake news dividiu os advogados consultados pela ConJur. Em um ponto, no entanto, eles são unânimes: melhor será fazer todas essas definições pelo devido processo legislativo, como recomendou a missão da OEA.
Presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), Fernando Neisser definiu a atuação do TSE como contundente, mas correta, feita em uma baliza de controle severa, mas isonômica, tudo dentro da legalidade e para cumprir o comando constitucional de proteger a normalidade das eleições.
“Não parece ter havido excessos dignos de crítica na atuação do TSE até o presente momento”, disse. “Mas concordo que melhor seria ter uma legislação mais robusta para o enfrentamento à desinformação, para que inclusive deixe de haver esse tipo de questionamento, de crítica.”
Segundo a advogada Paula Bernardelli, o rigor com que o TSE agiu foi justificado num cenário preocupante, em que a credibilidade do sistema foi colocada em cheque de forma criminosa. “O combate à desinformação é um tema central para a proteção do sistema democrático atualmente.”
Já o advogado Alexandre Rollo entende que o TSE ultrapassou limites e invadiu a seara do Legislativo ao editar resoluções de combate às fake news. “Não se criam penas, como ocorreu, através de resoluções. Isso cabe ao Poder Legislativo e aos representantes do povo, mas entendo que situações excepcionais demandam reações excepcionais.”
“Não se pode permitir que a desinformação seja a grande ‘eleitora’ nas disputas e que ela altere o resultado de uma eleição. O princípio da lisura das eleições deve ser respeitado e isso foi garantido pelo TSE, que, nesse ponto, merece todos os elogios”, completou ele.
No intuito de construir pela via legislativa ferramentas adequadas e eficazes para combater a desinformação, há alguns aspectos que precisam receber especial atenção, de acordo com os especialistas.
Paula Bernardelli avisa que os mecanismos legais precisam combater não apenas a circulação de desinformação, mas especialmente quem lucra e se beneficia diretamente com isso, buscando localizar a origem das fake news em circulação.
Fernando Neisser seguiu a mesma linha. Ele ressaltou que o modelo de combate às notícias falsas hoje permite controle sobre as plataformas digitais, que podem ser multadas, e sobre candidatos e partidos, que ficam sob pena de inelegibilidade e multas. As empresas que fornecem os serviços usados para desinformar em escala industrial, por sua vez, passam incólumes.
Assim, um empresário que vende bancos de dados, programas de disparo de mensagens em massa ou fazendas de bots pode, no máximo, ser alvo de ação de investigação judicial eleitoral, cuja consequência seria a declaração de sua inelegibilidade. O problema é que certamente não se trata de alguém que tenha pretensões de candidatura.
“É importante que a legislação que está em debate incorpore ilícitos e penas direcionadas exatamente a esse conjunto de atores, com proibição de contratar com campanhas, partidos e poder público, multas severas, apreensão de equipamentos e até a desconstituição da empresa. É preciso que essas pessoas sofram alguma consequência por participarem desses atos ilegais”, afirmou Neisser.
Alexandre Rollo também sugere a criação de multa para o caso de veiculação de desinformação. Isso porque quem é vítima de fake news pode ajuizar representação para excluir o conteúdo falso, pedir direito de resposta e eventual notícia-crime, mas nenhum desses procedimentos prevê punição financeira a quem comete o ilícito.
“Se além dessas providências fosse possível a aplicação de uma pena de multa ao propagador da desinformação, certamente as pessoas começariam a pensar duas vezes antes de adotar essa prática. A sanção pecuniária seria aplicada em ação de natureza civil, cuja procedência é bem menos difícil do que uma ação de natureza penal.”
No Congresso
Há atualmente no Congresso dois projetos de lei que podem oferecer respostas legislativas ao tema do combate à desinformação. Um deles é o novo Código Eleitoral (PLP 112/2021), aprovado em 2021 pela Câmara dos Deputados, mas que não teve tempo de tramitar no Senado antes das eleições deste ano.
O texto, até agora, acrescenta à legislação brasileira os crimes eleitorais de divulgar notícias falsas e de produzir banco de dados para espalhar informação fora dos limites permitidos. E prevê multa de R$ 30 mil a R$ 120 mil pela disseminação de fatos inverídicos em redes sociais e aplicativos de conversação instantânea nos três meses anteriores às eleições.
A outra tramitação é do polêmico PL das Fake News (PL 2.630/2020). O último texto discutido na Câmara, e que está pronto para a análise do Senado, entre outros pontos, veta o disparo de mensagens em massa para fins políticos e partidários e a comercialização de softwares que permitam essa prática, mas também estende a imunidade parlamentar aos sites e redes sociais mantidos por parlamentares.
Publicado originalmente no ConJur