E eis que publico a versão final do conto policial que minha caçula Camila e eu escrevemos em parceria. O protagonista é o Detetive Souza, viciado nas canoas chapadas da padaria perto de seu escritório. Canoas chapadas — posso dizer que como Souza gosto delas um bocado, sobretudo quando acompanhadas de Nescau gelado — são pães sem miolo e esquentados na chapa. Boa leitura!
“O ódio é sempre mais clarividente e mais engenhoso do que a amizade.”
Pierre Laclos
PRÓLOGO
O homem estava fazendo seu caminho habitual. Todas as manhãs, às 5 e meia pontualmente, ele atravessava o parque rumo ao lugar para o qual sempre se dirigia na primeira atividade do dia. Estava sempre sozinho na marcha. São Paulo acorda cedo, mas nem tanto.
O homem tinha as passadas rápidas de quem está interiormente apressado.
O único som que ele ouvia ao andar pelo parque era o de suas próprias passadas. São Paulo em certas situações pode ser silenciosa.
Então subitamente ele ouviu um barulho às suas costas.
Um cachorro, talvez.
Detestava cachorros. Mordem, fazem sujeira, dão despesas. Depois morrem e deixam o dono arrasado.
Mas não. Era um som parecido com o de suas próprias passadas.
Alguém acordara tão cedo quanto ele? Ou era um bêbado que acabara dormindo na grama macia do parque?
De repente o som ficou mais próximo. Alguém estava perto. Tão perto que podia ouvir a respiração.
Ficou irritado. Havia muito espaço ali para que alguém tivesse que andar tão perto. Não era um homem habituado a dividir nada. Sequer o espaço num parque ao caminhar.
Pensou em parar e deixar o outro passar. Aquilo estava perturbando-o.
E então finalmente olhou para trás. Pareceu surpreso e aliviado ao ver um rosto que lhe era familiar.
“Você por aqui?”
Foram suas últimas palavras.
Recebeu um, dois, três tiros no peito. Nem eram necessários tantos. O primeiro acertou o coração e o matou imediatamente.
Capítulo 1
Souza chegou a seu escritório, como sempre, faltando cinco para as nove da manhã. Estava caprichosamente vestido, como de costume. Paletó, gravata, sapatos lustrosos. Tudo simples e barato, mas absolutamente decente. Os cabelos brancos, ainda fartos para seus 63 anos, estavam impecavelmente repartidos no meio. Souza, antes de entrar no escritório, deu uma última tragada no seu primeiro cigarro do dia. Apagou-o, como de hábito, no cinzeiro que ficava sobre sua mesa.
Souza se tornara detetive particular depois de trabalhar quase 40 anos como investigador da polícia de São Paulo. A natureza de sua atividade mudara. Antes, cuidava sobretudo de casos policiais. Assassinatos, desaparecimentos, esse tipo de coisa. Agora, seus principais clientes eram maridos e mulheres desconfiados de que esta-vam sendo traídos. Souza descobrira que tais clientes podiam pagar muito bem por informações que muitas vezes abririam em suas almas feridas que jamais cicatrizariam.
Ganhava duas ou três vezes mais como detetive particular do que antes, como investigador da polícia. Só que sentia uma “falta de sangue”, como gostava de dizer. Poucas sensações na vida se igualavam à que ele tinha quando resolvia um assassinato.
Dona Alma, sua secretária, já estava no escritório quando Souza chegou. Era uma senhora mais ou menos da mesma idade dele. Séria, confiável, disciplinada, rígida, jamais faltava e nem se atrasava. Algumas pessoas contratam secretárias pela juventude e beleza. Desde seus tempos de polícia, Souza aprendera que as mais novas e mais bonitas são exatamente as piores. Acham que a graça pode sempre levar o chefe a perdoar seus atrasos e suas ausências.
Não eram ainda dez horas quando Souza avisou Dona Alma que iria tomar um café na padaria. Ela já sa-bia. Na rua de trás do escritório, a cinco minutos de caminhada, ficava a Nova Portugal, padaria na qual Souza ia três ou quatro vezes por dia tomar um café – não de máquina, mas de coador. Pela manhã e no fim de dia, ele acompanhava o café de uma “canoa chapada”, o pão sem miolo na chapa. Em cada ida Souza ficava entre 15 e 20 minutos. Não apenas tomava seu café como conversava com os balconistas e os fregueses conhecidos.
Naquela manhã, ao chegar à padaria, Souza logo notou o semblante tenso dos funcionários, habitualmente sorridentes e amigáveis. A padaria estava funcionando, mas alguma coisa não se encaixava bem.
Ela está com clima de funeral.
A primeira pessoa com quem ele cruzava na padaria era Rosa, a caixa, uma mulata que parecia saída dos romances de Jorge Amado. Por razões geográficas: a caixa ficava na entrada.
– Tudo bem?- disse ele protocolarmente, como sempre, para Rosa.
O rosto dela mostrava que não. Que diabos teria acontecido?
Souza estava preparado para ouvir muita coisa, mas não para aquilo que Rosa respondeu.
– Não – ela disse. Estava trêmula, como se tivesse acordado no meio da noite, aterrorizada por um pesadelo. – O Doutor Bezerra…
Bezerra era o dono da padaria. Não era doutor em nada, mas fazia questão de ser tratado assim pelos funcionários e pelos frequentadores da padaria. E, segundo diz a lenda, até por sua própria esposa.
– Hmmm – murmurou Souza, mordido pela curiosidade e pela ansiedade.
– Foi assassinado.
Capítulo 2
Quando Souza voltou para seu escritório, Dona Alma pôde notar seu semblante preocupado. Mais doce do que de costume, ofereceu-lhe um conhaque para que ele relaxasse. Ela mesma fazia isso em situações especiais: aprendera com a avó. Souza, hipocondríaco, recusou o conhaque. O conhaque, segundo Souza, poderia lhe causar dependência, hepatite alcóolica, cirrose, gastrite, neuropatias, desnutrição, aumento da pressão arterial, câncer, impotência, entre inúmeras justificativas.
Dona Alma, levemente estressada com a negativa do patrão, decidiu fazer um protesto silencioso pela seguinte meia hora; mas, como a típica velhinha fofoqueira que era, logo desistiu.
– Por que você voltou tão nervoso, Detetive? – perguntou Dona Alma, fingindo desinteresse e com seus olhos pousados em sua máquina de escrever, onde digitava um texto – Ohh, essas máquinas… – ela exclamava, deslumbrada – Recordam minha infância e juventude. A maldita tecnologia…
– Voltando à primeira pergunta, Dona Alma- interrompeu Souza – Doutor Bezerra está morto. Foi assassinado, e encontrado nas redondezas da padaria.
Dona Alma ficou extremamente surpresa, mas olhou para o Detetive com seus olhos inexpressivos.
– Ah, a Kelly – deu um suspiro – Aquela pobre criança deve estar extremamente infeliz… Como será que ela está lidando com a situação?
– Bem, evidentemente – disse o detetive, impiedoso e cínico. – Afinal, ela deve ter ficado com a herança como mulher do morto.
As palavras do detetive foram ditas de tal modo que Dona Alma deixou escapar um gemido de pavor.
– Não acha que…?
– Não acho nada, Dona Alma.
Os dois ficaram presos em um desconfortável silêncio, brutalmente interrompido por uma batida na porta.
– Entre – disse Dona Alma.
Uma jovem de mais ou menos vinte e cinco anos, alta e esguia, entrou no local. Ela estava usando um belo vestido vermelho, e tinha belos e sedosos cabelos negros. Sua pele extremamente pálida fazia um irresistível contraste com seus olhos azuis escuros.
– Querida Kelly! – exclamou Dona Alma, precipitando-se para abraçar a moça – Essa notícia certamente foi um terrível choque para você!
Kelly ergueu seus olhos e fixou-os em Dona Alma. Estava claro que ela havia chorado. Dona Alma fitou-a com prazer. A belíssima e gloriosa Kelly – graças a Deus! – não lembrava mais aquela jovem e irreverente garota de programa que Doutor Bezerra havia conhecido em uma boate carioca. Antes, era extremamente vulgar e terrivelmente festiva. Agora, ela havia se tornado uma elegante e refinada dona de casa, esposa de um homem rico e sem graça.
– Vim procurar consolo com a senhora, minha única amiga- choramingou Kelly.
Deixando as duas mulheres sozinhas, agora Dona Alma realmente enternecida e também com lágrimas nos olhos, Souza foi tomar seu segundo café na padaria, um pouco mais cedo do que de costume. Pessoas choronas o deixavam levemente irritado, e hoje não era dia de se irritar.
Entrou na padaria. Triste e nostálgica paisagem, onde a voz humana perdia-se numa desolação imensa por causa de um assassinato cruel. Quer dizer, isso era o que Souza pensava. Imaginando estarem todos em profundo luto, Souza fez questão de ensaiar seu olhar mais consolador possível; porém, ao entrar, viu que a desolação imensa fora somente temporária.
Recebido por Nelson, o rechonchudo gerente da padaria, dono de um bigode curto e caprichado, Souza notou imediatamente a falta de tristeza na expressão dele. Logo Nelson, grande amigo do Doutor Bezerra! Pessoas conversavam nas mesas, sentadas algumas no balcão e outras em pé, tranquilamente, esquecidas ou ignorantes da morte do dono da padaria.
Uma mulher distinta, que devia ter em torno de quarenta anos, morena e olhos vivos e calculistas, aproximou-se de Souza. Ele ficou surpreso. Ela não era exatamente bonita, mas atraente. Ele se perguntou, automaticamente, se ainda fazia sucesso com as mulheres como antigamente.
– O senhor é o famoso detetive Souza?- perguntou ela. E nem mesmo esperou que ele respondesse:- Sou Elvira Bezerra, irmã do Doutor Bezerra. Podemos marcar uma conversa no meu escritório?
Famoso.
Nem tanto, nem tanto, pensou Souza enquanto comia uma canoa chapada.
Capítulo 3
O escritório de Elvira Bezerra – que, conforme o Detetive Souza descobriu mais tarde, era uma bem-sucedida executiva – ficava na Avenida Paulista, e era muito bonito e bem decorado, embora demasiado feminino. Paredes cor de rosa com grandes corações brancos, grandes janelas de vidro que lhe davam uma bela vista da cidade e um sofá branco com almofadas roxas. Elvira Bezerra era mãe de uma filha, Adalgisa.
Souza a analisou rapidamente.
Uma daquelas mulheres que só pensam no trabalho e cuja zona erógena é o escritório.
– Senhor Souza- disse Elvira, com um ar suplicante. Nesse momento, o Detetive pôde constatar que ela era muito direta, pois não fez nenhuma introdução antes de falar-lhe simplesmente:- Quero contratá-lo para que o senhor descubra quem matou meu irmão.
Como Souza nada disse, ela continuou: — Quanto cobra?
Um pouco hesitante, o Detetive murmurou: – Uma taxa fixa de vinte e cinco mil reais, mais despesas.
Elvira aquiesceu. Parecia contente, agora, pois seus brilhantes olhos castanhos transmitiam serenidade e simpatia. Ainda com um sorriso no rosto, mandou que sua assistente Lupe trouxesse um suco de laranja para o detetive e uma água sem gás para ela. Lupe era uma bela e loira jovem que poderia ser classificada como uma legítima bombshell. Ela olhou sugestivamente para Souza. Este, corado, desviou seus olhos.
– Penso, então, que estamos combinados, senhor Souza. Vou lhe pagar agora, pois detesto ficar devendo, assim como detesto que me devam.
Percebendo que estava falando demais, ela pigarreou e continuou, um pouco mais séria:- Bem, o senhor ficou sabendo do que aconteceu com meu irmão, não ficou?
Com um ar sereno, Souza respondeu:
– Creio que ninguém tenha me informado exatamente o que aconteceu com o Doutor Bezerra. Tudo o que eu soube foi que seu irmão foi assassinado a sangue-frio na noite de ontem.
– Na verdade, não foi na noite de ontem, e sim nessa manhã… Ele sempre andava por uma praça para ir até a padaria…
– Sim, eu sei qual é. Mas nunca houve nenhum problema naquela praça!
– Era confiável até tornar-se inconfiável.- Elvira sorriu enigmaticamente. – Pois bem, detetive…- ela estava prestes a confidenciar algo, mas hesitou e, trêmula, ficou calada. Nem mesmo conseguiu olhar para o detetive.
– Por favor, dona Elvira, termine o que começou a falar…
– Estou perplexa com o que eu mesma pensei- confessou a mulher-, pois me sinto culpada ao sequer cogitar essa possibilidade… E é exatamente por isso que o contratei, senhor Souza, porque eu queria me livrar logo da minha suspeita, talvez equivocada…
– Do que suspeita, senhora?
– Suspeito da minha cunhada.
Novamente, Elvira desviou o olhar de Souza. – Kelly, como o senhor já sabe, conheceu meu irmão em uma boate, e era uma mulher da vida. E, pelo que o último detetive que contratei para a desvendar me disse, era barata. Acostumada a atender gringos em Copacabana, sabe como é. Bem, em todo caso, meu caro Detetive, ela evidentemente não estava habituada a viver luxuosamente, e eu penso que talvez todo esse luxo que o Doutor Bezerra lhe proporcionava possa ter subido à sua cabeça.
– E ela o tenha assassinado pensando na herança?
– Não sei, senhor. Acho que sim, mas não posso afirmá-lo… Meu irmão sempre teve muito receio de que Kelly o traísse, o que se levando em conta o passado dela é muito provável. Quanto tempo o senhor acha que precisa?
– Pelo menos duas semanas.
– Bem, se o senhor diz duas semanas eu levo como um mês, por assim dizer. Não me espantaria que, ao fim desse tempo, Kelly já estivesse noiva de um outro homem, ou qualquer coisa desse tipo. É o exato tipo de mulher que precisa de um homem para viver. Antes tinha seu gigolô. Depois meu irmão. Veremos quem será o próximo.
– Você acha que ela seria capaz…
– De assassinar alguém? Ah, disso eu tenho certeza. Mas não sei se foi o caso. Por isso contratei você.
Capítulo 4
Quando o Detetive Souza acordou, estava muito mais calmo do que de costume. Depois de tomar seu clássico café na padaria com a canoa chapada, pediu a Dona Alma que ligasse para Kelly, marcando um encontro. Esta relutou; disse que a pobre moça não deveria ser mais importunada com esse assunto, que sofreria demais e que magoá-la com isso seria um pecado. Como Souza insistiu, Dona Alma acabou cedendo.
Ah, os homens são totalmente insensíveis.
O encontro ficou marcado para o meio-dia, e até lá Souza teria tempo para organizar as ideias. Quando o tempo chegou, o detetive foi encontrar Kelly na cobertura na qual ela morava com o marido.
Foi recebido pela empregada, Maria Ernesta, que o conduziu até a sala de estar da patroa. Kelly, ao contrário da última vez em que Souza a havia visto, estava vestida com extrema simplicidade. Apenas um vestido rosa, e sem nenhuma jóia. Nem sua aliança usava mais.
– Bom dia – ela o cumprimentou.
Souza deixou-se ser conduzido até um sofá branco, e lá sentou-se. Um pouco sem graça, disse:- Fui contratado por Elvira Bezerra, sua cunhada, para desvendar o assassinato de seu marido…
– E ela acha que eu o matei, naturalmente.- murmurou Kelly, sem graça- Oh, detetive, o senhor não pen-sa isso, pensa?- os olhos azuis suplicantes atingiram os dele, deixando-o momentaneamente constrangido- Eu ja-mais faria algum mal a ele. Mesmo depois que soube de Anna, eu…
– Anna?
Kelly corou e, um pouco hesitante, sussurrou:
– Anna Bittencourt, a amante do meu marido.
O Detetive soltou uma exclamação de surpresa.
– Doutor Bezerra tinha uma amante? Com você em casa? – perguntou, para total satisfação de Kelly, que ficava ainda mais bonita quando corava. – A senhora a conheceu?
– Não, mas sempre tive muito interesse. Pensei em segui-lo uma vez, quando ele foi encontrá-la. Mas de-pois percebi que seria inútil. Se ela fosse bonita, eu me sentiria mal, entende? E se não fosse, eu também me sen-tiria mal. Fora isso, foi muita bondade do Doutor Bezerra de ter se casado comigo. Eu não poderia reclamar de na-da, e nem mesmo exigir fidelidade.
– Entendo, senhora. Mas você percebeu algo de estranho no comportamento de seu marido nos últimos tempos?
– Não, nada.
Mas Souza pôde ver que Kelly hesitou ao responder sua pergunta. Com sua voz mais doce e persuasiva, o Detetive perguntou:
– Você sabe que pode confiar em mim, não sabe? Diga-me, o que andava aborrecendo o Doutor Bezerra?
Kelly olhou-o enigmaticamente.
– Bem, ele estava nervoso, nos últimos tempos. Havia descoberto que Nelson o roubava.
Com um misterioso sorriso, a moça levantou-se e acenou para Souza, deixando-o na sala, sozinho e pensativo.
Ladrão e assassino, o Nelson?
Capítulo 5
Souza decidiu falar com Nelson como se fosse uma conversa qualquer na padaria. Sempre batiam um papo, geralmente sobre futebo. Souza era corintiano e Nelson são-paulino. Quando o Corinthians estava por cima, Souza não perdoava Nelson. Quando era o São Paulo quem dominava era o inverso. Os dois se davam bem, apesar das dife-renças futebolísticas.
– Loucura, hem, Nelson?- disse Souza, uma canoa chapada nas mãos.
Nelson estava mais filosófico do que triste ou perplexo.
– A vida é frágil, Souza. A gente tem que aproveitar cada instante porque pode ser o último… Temos que viver o aqui e agora…
Nelson mostrava aí a influência de Paco, um frequentador da padaria que era adepto do zen-budismo. Os zen-budistas afirmam que você não deve olhar nem para trás, porque traz mágoas, e nem para a frente, porque é fonte de aflição. Viva apenas o dia de hoje, e já é o suficiente. Nelson aprendia rapidamente a essência do que seus amigos da padaria diziam. Gostava das ideias de Paco, e as adotara, a seu modo tosco, não burilado.
Souza tentou ler nos olhos de Nelson alguma coisa que pudesse ajudá-lo em seu trabalho de investigação. Se era verdade que Nelson vinha roubando a padaria, como dissera a viúva Kelly, a morte de Bezerra fora para ele uma solução. Perderia o emprego, e poderia ter problemas com a polícia se Bezerra decidisse encrencar.
Mas seria ele capaz de assassinar friamente um homem?
Souza achava que sua intuição era poderosa. Minha inteligência não é grande coisa, mas minha intuição é de gente estudada, dizia sempre para si mesmo.
Sua avaliação sobre Nelson oscilava naquele momento que conversavam. Num instante, ele parecia como que enxergar em Nelson, por trás da fachada de gerente boa praça de padaria, um homem capaz de apertar o ga-tilho contra alguém. Logo depois, Nelson lhe parecia absolutamente inofensivo.
De todo modo, é certo que Nelson poderia ter matado seu patrão. Ele sabia o caminho que Bezerra fazia rumo à padaria. Sabia a hora. Sabia tudo. Bastaria esperar num lugar escondido do parque. Souza se lembrava de ter ouvido Nelson dizer meses antes que estava aprendendo a atirar porque São Paulo se transformara numa selva – ele se gabava de que tinha uma mira de pistoleiro de filme de velho oeste.
– Como vai ficar a padaria?- perguntou Souza, com uma voz despretensiosa.
– A dona Kelly não falou ainda comigo- disse Nelson- Imagino que ela vá querer vender. E eu…
– E você…?
– E eu quero comprar. Não te contei, mas recebi uma herança de um tio sem filhos. Eu era o único sobri-nho. Não é muito dinheiro, mas é o suficiente para pelo menos dar uma boa entrada para comprar a padaria. Isso se a dona Kelly realmente decidir vender.
Um dinheiro aparecer como que do nada. Souza se perguntou se, em vez da herança, não era o dinheiro que segundo a viúva Nelson vinha subtraindo.
– Como era o Bezerra como patrão, Nelson?- perguntou Souza, ardilosamente.
A resposta fulminante o surpreendeu.
– Um monstro, Souza. Um monstro. Tratava todos como se fôssemos gado. Deus me perdoe, mas…
– Mas o que, Nelson?- puxou Souza.
– Mas o mundo filho melhor sem o Doutor Bezerra, Souza. Escreve aí. Ficou melhor.
Nada vale menos que um patrão morto.
Capítulo 6
Souza recebeu um telefonema de Elvira Bezerra. Esta lhe pedia que a encontrasse em seu escritório o mais rápido possível. Prevendo uma catástrofe – e repetindo para si mesmo minha inteligência não é grande coisa, mas minha intuição é de gente estudada — o detetive foi encontrar Elvira.
– Olá, meu querido!- exclamou ela, quando o viu. Ela parecia calma e serena. – Nossa, você parece nervoso. Lupe, traga chá de camomila para o Detetive Souza!- gritou Elvira.
Souza foi obrigado a tapar os ouvidos. A voz de Elvira era bonita, mas estridente demais.
– Por favor, sente-se.
Souza se sentou.
– Detetive, o senhor já sabe que Kelly… Kelly…- murmurou ela.
– Está grávida? Sei sim, dona Elvira.- disse Souza.
Elvira Bezerra não disse nada por alguns momentos. Não por falta de vontade e não por preguiça, e sim porque não encontrava as palavras certas. Então, com um ar consternado, perguntou ao detetive, em uma voz tão baixa que era quase inaudível:
– Acha que o filho é do meu irmão?
Foi a vez de Souza não responder. Ele deu de ombros.
– Porque se for- ela tornou a falar- E se… E se ela estiver grávida do filho do Doutor Bezerra? Mas e se ela for a culpada? Meu sobrinho… Eu irei criá-lo, naturalmente, mas pobre criança! Imagine só, uma mãe homicida! E o pai morto por ela!
Um silêncio extremamente constrangedor os envolveu.
Capítulo 7
Nelson estava mais sorridente que o habitual naquele final de expediente na padaria. Eram dez da noite, e ele sairia em poucos minutos. Penteara o cabelo com capricho. Vestira-se como há muito não fazia. Até gravata – a única que tinha – pusera. Também se perfumara.
Os empregados estranharam. Ele disse que suas novas responsabilidades como supervisor da padaria, agora que o dono estava morto, exigiam que se vestisse com mais rigor.
Ele só pode estar indo encontrar uma mulher, pensou Suely, a caixa do turno da noite da padaria. Essa suspeita ficou ainda mais forte nela quando, ao passar pela caixa, Nelson apanhou balas de menta. Queria estar com um bom hálito, desconfiou Suely.
– Vai casar, Nelson?- brincou ela.
– Quase. Vou a uma festa de casamento – respondeu ele.
Até parece, pensou Suely.
Nelson fez uma coisa que nunca fizera. Ao dizer boa noite, dera um beijo casto e paternal no rosto de Su-ely e depois a elogiara.
– Já disse que você é uma excelente funcionária?- perguntou Nelson a ela.
Não, jamais dissera aquilo. Jamais estivera tão feliz como naquela noite. Parecia outro Nelson, como se a morte de Bezerra lhe tivesse feito bem.
Ele nem se preocupava em fingir tristeza.
– Então está dito. Você já está merecendo um aumento – disse Nelson.
Ele já estava praticamente fora da padaria quando se virou para Suely e disse, filosófico: — Aproveite ca-da dia porque pode ser o último.
E foi mesmo.
Foi o último dia de Nelson, pelo menos nesta vida.
Seu corpo foi encontrado na madrugada no estacionamento de um shopping center. Três tiros, como seu patrão. Os dois estavam igualados na morte por assassinato.
Pelo menos morreu feliz, pensou Suely, e bonito.
Capítulo 8
– Eu estava esperando por esse momento desde que vi você pela primeira vez.
Souza sorriu diante dessa declaração. Fazia tempo que não ouvia nada parecido. Mais anos do que ele conseguia lembrar, na verdade.
A idade um antiafrodisíaco infalível.
A seu lado na cama de um motel na Raposo Tavares, estava uma bela mulher na casa dos 40 anos. Os cabelos, negros e longos, estavam soltos. Ela vestia apenas uma camisola rosa e transparente. A bolsa prada, com-prada em Paris, estava ao lado dela.
– Você não vai tirar a roupa?- ela perguntou em sua voz modulada, quase teatral.
– Você acha que eu devo?- Souza sorriu.
– Talvez não – ela respondeu.
E então, com uma agilidade quase que de atleta, ela saltou da cama, agarrada a sua bolsa. Tirou dela um revólver e apontou para Souza.
– Pena que eu tenha que fazer isso – ela disse.
Souza não pareceu surpreso e nem amedrontado.
– Um último pedido – disse ele.
– Sou generosa. Pode falar.
– Por quê? Por que tudo isso?- ele perguntou.
– Que mãe não faria o que eu fiz?- ela disse- Aquele demônio… Meu irmão não era um homem, era um animal, um diabo. Foi ele que engravidou minha filha. Estuprou, na verdade. Porque quando você embebeada uma menina de dezesseis anos ela faz tudo o que você quer. Ele…
Elvira parecia a ponto de chorar.
-… Ele tinha feito o mesmo comigo, aquele canalha. Ele é o pai da minha filha.
– Você está dizendo que ele estuprou a própria filha?
– Sim, e eu devia ter matado aquele filho da puta há muito tempo.
– E por que o Nelson? Por que matar aquele pobre idiota?
– Ele tinha descoberto.
– O quê?- Souza parecia perplexo com a informação de que Nelson descobrira que fora Elvira quem ma-tara Bezerra.
– Ele estava por perto da sala do meu irmão quando eu liguei para ele logo depois de descobrir o que ti-nha feito com Adalgisa. Foi uma conversa horrível. Meu irmão falava alto no telefone. Gritava, o canalha. Nelson logo entendeu que eu estava furiosa, disposta a tudo para me vingar. No próprio enterro, ele veio para perto de mim e disse, no meu ouvido, que o defunto merecia bem mais que aquelas duas balas. E me piscou como que dizendo que sabia de tudo. Não foi difícil atrair aquele idiota para o encontro. Ele sempre olhou meus seios como se estivesse olhando uma pilha de dinheiro, com ganância. Os dez mil reais que gastei com eles foram de fato bem empregados.
– Matar dois homens… Isso não é nada para você?
– Depois que você mata um, o segundo é fácil. O Bezerra era um monstro e o Nelson um inútil. Já há inú-teis demais neste mundo superpovoado. Mas você… Você eu lamento, Souza. Poderíamos ter sido amigos. Ou ma-is que isso. Pena termos nos encontrado nessas circunstâncias.
– Mas você deixou os documentos na entrada do motel – disse Souza.
– Falsos, claro. Como o cabelo com o qual cheguei. Uma peruca loira que me deixou com cara de Lady Gaga, abominável. Fiz questão de que cada um viesse com o próprio carro para que nada desse errado. Estou com a boca seca, Souza. Adeus. Vou ao seu enterro, prometo. Prometo também que vou chorar.
Então ela apertou o gatilho.
Nada.
Apertou de novo.
Nada, outra vez.
– Procurando isso?
Ele tirou do bolso da calça as balas do revólver.
– Eu também sou prevenido, Elvira. Você foi inteligente ao me contratar para descobrir o assassino. Foi um despiste brilhante. Todas aquelas histórias fantásticas que você me narrava, dos roubos de Nelson… Eu poderia ter acreditado nelas, sabe- murmurou- Mas quando vi sua filha grávida as peças do quebra-cabeça se juntaram em minha cabeça imediatamente. O Nelson, um falastrão, tinha me dito que ia se encontrar com uma mulher maravilhosa que havia dado uma lição no homem que engravidara sua filha adolescente. Uma lição fatal, o Nelson acrescentou, rindo. Minha intuição também ajudou. Quando você me convidou para sair, eu já sabia o que você queria: meu cadáver, não meu sexo. O revólver só podia estar na bolsa. Quando você foi ao banheiro se maquiar, eu rapidamente abri sua bolsa, apanhei o revólver e tirei as balas.
Elvira, com sua mente lógica de executiva, compreendeu que estava perdida. Souza ia ligar para a polícia quando ela disse:
– Posso fazer um último pedido, também?
Ele aquiesceu com a cabeça.
– Quero fazer sexo com você. Você é o homem mais extraordinário que conheci na minha vida. Vai ser a lembrança que vou guardar nos anos de cadeia que em esperam.
Souza balançou a cabeça.
– Não faço sexo com clientes. É meu código de honra.
E então ligou para a polícia.
EPÍLOGO
Souza estava comendo sua segunda canoa chapada do dia na padaria. Eram 11 da manhã, e a padaria estava lotada como sempre. Não parecia que nada acontecera. Ninguém diria que, pouco tempo atrás, o dono e o gerente tinham sido assassinados. Kelly, a jovem viúva, decidira tocar ela mesma a padaria. O gerente que substituíra Nelson era um antigo chapeiro, Agnaldo. Alguns diziam que era amante de Kelly, e que era ele, na verdade, o pai da criança que a víuva carregava. Mas Dona Alma disse a Souza que eram apenas mais infâmias atiradas contra a pobre garota.
Elvira fora presa, e aguardava julgamento. O caso ganhara destaque na imprensa de São Paulo, que chamava Elvira de “Executiva Assassina”. Souza dera várias entrevistas. Um repórter o apelidou de “Detetive da Canoa Furada”. A todo entrevistador dizia, em sua inexpugável modéstia, que podia não ter o detetive mais inteligente do mundo, mas quando se tratava de intuição, era um homem difícil de bater.