Os finlandeses criticam sua primeira-ministra porque não conhecem Bolsonaro. Por Nathalí

Atualizado em 25 de agosto de 2022 às 21:57
A primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, se emociona em discurso durante evento do Partido Social-Democrata em seu apoio Foto: Heikki Saukkomaa

Por Nathalí Macedo: 

Desde que a primeira-ministra da Finlândia Sanna Marin apareceu em um vídeo dançando com amigos em um ambiente privado, vem recebendo duras críticas da oposição e dos próprios eleitores.

Em um país que leva a pandemia a sério, é assim: você não pode sair por aí em motociatas enquanto as pessoas morrem no hospital.

Por muito menos – beber e dançar com amigos em um ambiente intimista – você é criticado, porque é um Chefe de Estado e deve se comportar como tal.

Evidente que recolhimento absoluto é o que hipocritamente se espera de uma mulher na posição de Marín, e é bom notar que em algum lugar do mundo as pessoas ainda não agem como se a pandemia tivesse acabado, mas, para uma brasileira que suporta Bolsonaro, Sanna Marin é mais do que defensável. “Sou humana. Nesses tempos sombrios, sinto falta de alegria, luz e diversão”, justificou, em um discurso emocionado.

Em que pese não poder dançar nas horas vagas, Marín fez e faz um excelente trabalho: a Finlândia foi um dos países de maior sucesso na gestão da pandemia. No país menos impactado pela COVID de toda a Europa, a confiança no Governo é um dos fatores que explicam o sucesso na contenção da doença.

Finlandeses respeitam os protocolos de pandemia e país é referência na luta contra COVID
Foto: Markku Ulander/AP Photo

Enquanto quase todo o resto do mundo ainda aprendia a lavar as mãos e discutia se vidas realmente importavam mais do que a economia, a Finlândia determinou lock-down de dois meses. Além disso, o país dispõe de um sistema de rastreamento rápido de pessoas que tiveram contato com aqueles com testaram positivo, o que ajuda a conter a contaminação.

O lock-down teve aderência de mais de 73% da população e a cultura também explica a não-resistência: “Não somos tão sociáveis ​​e gostamos de ficar sozinhos”, disse a psicóloga social Nelli Hankonen, da Universidade de Helsinque, em entrevista à agência de notícias AFP.

Talvez por isso os finlandeses estejam tão absurdados com o vídeo de sua primeira-ministra, que dançava fora do horário do expediente.

Decerto não conhecem Bolsonaro – e não perdem nada.

Imagine um finlandês no Brasil, onde o presidente faz passeios de moto pelo país em horário de trabalho, desestimula a vacinação e é exposto em horário nobre imitando cruelmente doentes com falta de ar.

Bolsonaro é o primeiro presidente a desencorajar a vacinação
Foto: Reprodução

O país das valas comuns, dos mais de 680 mil mortos, onde o próprio chefe do Poder Executivo promove aglomerações, chama a doença de “gripezinha” e sequer lamenta as mortes: “E daí? Não sou coveiro!”

Penso sinceramente que, ainda que a Finlândia fosse um país com problemas reais, a dança da primeira-ministra teria se tornado uma crise – tudo o que as mulheres fazem é alvo de críticas e eventualmente desencadeiam uma crise política.

Penso, por outro lado, se assim seria se em vez de primeira-ministra, houvesse um Primeiro-Ministro: uma mulher deve sempre pensar na cota da misoginia em cada crítica que recebe ou vê outras mulheres receberem.

A violência política de gênero ainda é um tabu no mundo inteiro, mas uma realidade flagrante inclusive na Europa, o que significa que as atitudes de uma mulher em um lugar de chefia chocam e suscitam muito mais críticas do que as atitudes de um homem.

Na política ou em qualquer outro lugar, mulheres precisam ser perfeitas para que sejam respeitadas, enquanto aos homens é facultado o direito de errarem dezenas de vezes sem consequências.

Some-se a isso uma terrível cultura-da-carola em que mulheres não têm o direito de se divertirem – menos ainda se por acaso se atreverem a ocupar espaços de poder – e o resultado é este: uma enxurrada de críticas que certamente não se direcionariam a um homem, mesmo que na Finlândia, numa cultura totalmente diferente da nossa – mas que ainda faz parte da velha cultura patriarcal universal.

No Brasil, se fosse Dilma a promover aglomerações durante uma pandemia – ou mesmo por muito menos – seria linchada: o caso de Sanna Marín me lembra que os absurdos que Bolsonaro faz ocupando a cadeira da Presidência, seu escárnio e projeto necropolítico diante da pandemia, são muito mais perdoáveis porque ele é um homem.

Bolsonaro incentiva aglomerações no ápice da pandemia e desrespeitas protocolos de saúde
Foto: Reprodução

Aqui ou em qualquer lugar, há de se ter ainda muita luta para que mulheres em espaços de poder tenham tanta licença para errarem quanto têm os homens – como mostra com maestria o mini-doc “Eleitas – Violência Política de Gênero”, disponível no YouTube.

Embora a misoginia e a violência política tenham sua parcela de contribuição no linchamento moral de Sanna Marín, as diferenças entre Bolsonaro e ela, é claro, vão muito além do gênero.

Enquanto os finlandeses crucificam sua primeira-ministra por uma dança, nós tentamos sobreviver ao bolsonarismo e nos perguntamos se os resultados das eleições serão respeitados.

Veja a publicação do twitter com discurso feito pela primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marín: 

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