Por Nathalí Macedo:
Desde que a primeira-ministra da Finlândia Sanna Marin apareceu em um vídeo dançando com amigos em um ambiente privado, vem recebendo duras críticas da oposição e dos próprios eleitores.
Em um país que leva a pandemia a sério, é assim: você não pode sair por aí em motociatas enquanto as pessoas morrem no hospital.
Por muito menos – beber e dançar com amigos em um ambiente intimista – você é criticado, porque é um Chefe de Estado e deve se comportar como tal.
Evidente que recolhimento absoluto é o que hipocritamente se espera de uma mulher na posição de Marín, e é bom notar que em algum lugar do mundo as pessoas ainda não agem como se a pandemia tivesse acabado, mas, para uma brasileira que suporta Bolsonaro, Sanna Marin é mais do que defensável. “Sou humana. Nesses tempos sombrios, sinto falta de alegria, luz e diversão”, justificou, em um discurso emocionado.
Em que pese não poder dançar nas horas vagas, Marín fez e faz um excelente trabalho: a Finlândia foi um dos países de maior sucesso na gestão da pandemia. No país menos impactado pela COVID de toda a Europa, a confiança no Governo é um dos fatores que explicam o sucesso na contenção da doença.
Enquanto quase todo o resto do mundo ainda aprendia a lavar as mãos e discutia se vidas realmente importavam mais do que a economia, a Finlândia determinou lock-down de dois meses. Além disso, o país dispõe de um sistema de rastreamento rápido de pessoas que tiveram contato com aqueles com testaram positivo, o que ajuda a conter a contaminação.
O lock-down teve aderência de mais de 73% da população e a cultura também explica a não-resistência: “Não somos tão sociáveis e gostamos de ficar sozinhos”, disse a psicóloga social Nelli Hankonen, da Universidade de Helsinque, em entrevista à agência de notícias AFP.
Talvez por isso os finlandeses estejam tão absurdados com o vídeo de sua primeira-ministra, que dançava fora do horário do expediente.
Decerto não conhecem Bolsonaro – e não perdem nada.
Imagine um finlandês no Brasil, onde o presidente faz passeios de moto pelo país em horário de trabalho, desestimula a vacinação e é exposto em horário nobre imitando cruelmente doentes com falta de ar.
O país das valas comuns, dos mais de 680 mil mortos, onde o próprio chefe do Poder Executivo promove aglomerações, chama a doença de “gripezinha” e sequer lamenta as mortes: “E daí? Não sou coveiro!”
Penso sinceramente que, ainda que a Finlândia fosse um país com problemas reais, a dança da primeira-ministra teria se tornado uma crise – tudo o que as mulheres fazem é alvo de críticas e eventualmente desencadeiam uma crise política.
Penso, por outro lado, se assim seria se em vez de primeira-ministra, houvesse um Primeiro-Ministro: uma mulher deve sempre pensar na cota da misoginia em cada crítica que recebe ou vê outras mulheres receberem.
A violência política de gênero ainda é um tabu no mundo inteiro, mas uma realidade flagrante inclusive na Europa, o que significa que as atitudes de uma mulher em um lugar de chefia chocam e suscitam muito mais críticas do que as atitudes de um homem.
Na política ou em qualquer outro lugar, mulheres precisam ser perfeitas para que sejam respeitadas, enquanto aos homens é facultado o direito de errarem dezenas de vezes sem consequências.
Some-se a isso uma terrível cultura-da-carola em que mulheres não têm o direito de se divertirem – menos ainda se por acaso se atreverem a ocupar espaços de poder – e o resultado é este: uma enxurrada de críticas que certamente não se direcionariam a um homem, mesmo que na Finlândia, numa cultura totalmente diferente da nossa – mas que ainda faz parte da velha cultura patriarcal universal.
No Brasil, se fosse Dilma a promover aglomerações durante uma pandemia – ou mesmo por muito menos – seria linchada: o caso de Sanna Marín me lembra que os absurdos que Bolsonaro faz ocupando a cadeira da Presidência, seu escárnio e projeto necropolítico diante da pandemia, são muito mais perdoáveis porque ele é um homem.
Aqui ou em qualquer lugar, há de se ter ainda muita luta para que mulheres em espaços de poder tenham tanta licença para errarem quanto têm os homens – como mostra com maestria o mini-doc “Eleitas – Violência Política de Gênero”, disponível no YouTube.
Embora a misoginia e a violência política tenham sua parcela de contribuição no linchamento moral de Sanna Marín, as diferenças entre Bolsonaro e ela, é claro, vão muito além do gênero.
Enquanto os finlandeses crucificam sua primeira-ministra por uma dança, nós tentamos sobreviver ao bolsonarismo e nos perguntamos se os resultados das eleições serão respeitados.
Veja a publicação do twitter com discurso feito pela primeira-ministra da Finlândia, Sanna Marín:
Em discurso emocionado, primeira-ministra da Finlândia fala sobre festas particulares. “Sou humana”.
Sanna Marin foi criticada por vídeo no qual aparece dançando com amigos em ambiente privado. Repercussão também gerou uma campanha de solidariedade no país. pic.twitter.com/DEpV753V8a
— Metrópoles (@Metropoles) August 24, 2022