Por José Eduardo Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
Numa longa aula inaugural do ano letivo da Escola Superior de Guerra (ESG) em 1976, doze anos após o golpe que instaurou uma ditadura militar no País e encerrou o período democrático que havia sido iniciado em 1946, o ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, general Antonio Jorge Correa, fez várias afirmações que tiveram grande destaque à época, suscitando debates e polêmicas.
Criada em 1949, no período do pós-guerra, a ESG surgiu da aprendizagem e das reflexões que os comandantes da Força Expedicionária Brasileira fizeram após combater o fascismo na Itália. Eles tiveram a percepção da necessidade, por um lado, de uma coordenação militar bem mais eficiente, e, por outro, da criação de uma escola de alto nível capaz de formular uma nova doutrina de segurança nacional.
De todas as afirmações feitas pelo general Correa em 1976, quando a influência da ESG sobre os militares crescera significativamente, três merecem ser lembradas. Primeiramente, ele disse que a guerra pertence ao domínio do social, lembrando o general prussiano Carl von Clausewitz, autor de um livro clássico sobre a “arte da guerra”.
Desse modo, quanto maior for a diferença entre o objetivo político e a finalidade militar, que é a destruição do adversário, mais política seria a guerra. Em segundo lugar, Correa anunciou que a ESG passaria a exercer o papel de formadora de uma elite dirigente capaz de interpretar as “aspirações e os autênticos interesses nacionais”, formulando as políticas condizentes.
Segundo ele, o programa da escola se basearia no estudo de planejamento, na análise da evolução da conjuntura internacional e na elaboração de estratégias correspondentes para manter os objetivos nacionais, além da doutrina militar e do preparo da expressão do poder militar nacional. Por fim, anunciou que a elite dirigente formada pela ESG teria um papel decisivo na implementação do II Plano Nacional de Desenvolvimento. Previsto para o período de 1975 a 1979, ele foi formulado pelo presidente da República, general Ernesto Geisel, em seu primeiro ano de mandato.
Conectado com os demais, este último foi o ponto mais importante da aula pronunciada pelo general Correa. Segundo ele, o II PND não consistiria apenas em um instrumento de “planejamento metódico de ação governamental” e em um dos aspectos mais importantes “da racionalidade implantada na nossa vida pública pela Revolução” — o nome que os militares deram à ditadura instaurada em 31 de março de 1964.
Na época, fortemente marcada por pressões internas causadas pela Guerra Fria, os militares justificaram o golpe invocando o que chamaram de “valores negativos”, cuja síntese era por eles expressa pela narrativa do “combate à anarquia e ao comunismo”.
Doze anos após o golpe, o ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas disse, da tribuna da ESG, que, por meio do II PND, o regime militar estava buscando a concretização de seus “valores positivos”, então sintetizados pelo “binômio desenvolvimento econômico e segurança”, por ele apontado como “a essência doutrinária da Revolução”.
A substituição da ênfase inicial dada aos valores negativos pelo destaque dado aos valores positivos, no período de apenas doze anos, decorreu de vários fatos. Um deles foram as mudanças estruturais sofridas pelas Forças Armadas.
Em 1964, elas atuaram como poder moderador — papel esse originariamente assumido em 1889, após o golpe militar que derrubou o Império e viciou a República já em sua origem. Já em 1976, preocupadas com a segurança interna e não escondendo o desejo de maior protagonismo num período em que o militarismo mundial discutia o que seria uma “guerra moderna”, as Forças Armadas tentaram substituir o papel de árbitro pelo de participante efetivo — mais especificamente, de policy-maker. O ambicioso II PND foi uma das provas mais evidentes dessa pretensão.
Como a concepção de guerra à época enfatizava a importância do planejamento, da eficiência administrativa, da maximização da produção e da minimização das tensões internas, o II PND, pelo que se depreende da aula do ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, asseguraria aos militares o papel de formuladores e implementadores das políticas de desenvolvimento econômico.
Com base numa ideia de segurança nacional reformulada e ampliada, os militares converteram o Executivo — então chefiado por Ernesto Geisel, um general consciente do princípio da autoridade — em um poder centralizador, intervencionista e dotado de mecanismos eficazes de planejamento.
Ao se debruçarem sobre a preocupação das Forças Armadas brasileiras com a eficiência técnica necessária para executar um projeto de crescimento acelerado e de ênfase à ampliação de investimentos no setor petroquímico e na produção de bens de capital e de equipamentos pesados, vários analistas identificaram um novo padrão de capacitação técnica nas Forças Armadas brasileiras.
Uma capacitação profissional vinculada não só ao aparelho de Estado, mas, igualmente, a objetivos nacionais que, se fossem efetivamente concretizados ou conquistados, confeririam legitimidade à sua intervenção política. Com isso, um regime originariamente autocrático poderia se legitimar a posteriori em decorrência dos resultados alcançados em matéria de crescimento, como disse Roberto Campos à época, em A nova economia brasileira (Rio de Janeiro, José Olympio, 1976).
O problema é que, se de um lado esse tipo de legitimidade estava condicionado a uma percepção favorável da eficiência de gestão do regime por parte do eleitorado, de outro não assegurava necessariamente o restabelecimento de todas as liberdades públicas.
E estas são fundamentais para a prática da política democrática, o que leva à conhecida antinomia entre os valores nela implícitos, como a discordância, a crítica, a negociação e o veto, e os valores estamentais das corporações militares. Ou seja, o respeito ao princípio da hierarquia e à ordem recebida com base no princípio de autoridade.
A submissão mais aos regimentos disciplinares do que ao direito positivo, cujas normas não abrangem a ação dos militares enquanto integrantes de uma organização corporativa. E a ênfase à ideia de que militares se sentem melindrados quando não são “valorizados” e “prestigiados” ou quando têm sua “honra” maculada. Estes são valores incompatíveis com os da vida política, os quais teriam introduzido no estamento militar o que os comandantes das Forças Armadas costumavam classificar como fatores desagregadores da disciplina e do espírito de corpo.
Naquele momento, um ex-ministro do Exército da ditadura, o general Aurélio de Lyra Tavares, preparava o lançamento de seu livro de memórias, intitulado O Brasil de minha geração. Na obra, que foi publicada em 1977 pela Biblioteca do Exército, ele afirmava que o sentido de honra de seus colegas de farda se inseria nas “servidões da carreira militar”. Essas “servidões” pressupunham a ideia de obediência e de grandeza nacional, dizia, e eram inconciliáveis com o que chamava de “liberalidades” da política.
Em outubro de 1969, Lyra Tavares fora um dos autores intelectuais do Ato Institucional nº 17, que autorizou a Junta Militar constituída após o afastamento do presidente Costa e Silva, por doença, a colocar na reserva militares da ativa que “tivessem atentado ou viessem a atentar contra a coesão das Forças Armadas”.
Primando pela aversão que o estamento militar tem pela política e reconhecido até hoje como o dispositivo formal que consagrou o “princípio do chefe” num momento delicado da vida institucional brasileira, o AI-17 foi o modo então encontrado para conter eventuais oposições contra nomes indicados pelas corporações militares para ocupar o Palácio do Planalto.
Nesse sentido, é importante retomar uma passagem do livro de Lyra Tavares, na qual afirma que “a atenta observação dos episódios político-militares ocorridos sobretudo durante o período republicano […] permite verificar o envolvimento a que está sujeito o militar, com comprometimento de seus deveres precípuos, no processo político, sobretudo quando atraído por grupos ou líderes interessados em fazer das Forças Armadas, ou de parte delas, um instrumento de política partidária”.
Entre 1974, ano em que o II PND foi enviado ao Congresso, e 1976 e 1977, anos em que ocorreram tanto a aula do general Antonio Jorge Correa na ESG quanto o lançamento do livro de memórias do general Lyra Tavares, as discussões sobre o protagonismo das Forças Armadas decorrente da maior capacitação e da qualificação de seu oficialato estimularam a publicação em português de importantes livros sobre o militarismo brasileiro, publicados originariamente por analistas americanos alguns anos antes.
Um desses livros, O soldado e o Estado: teoria e política nas relações entre civis e militares, de autoria de Samuel Huntington, professor de Harvard, foi publicado pela própria Biblioteca do Exército. Outro livro foi O soldado profissional: um estudo social e político, de autoria de Morris Janowitz, professor da Universidade de Chicago. Um terceiro livro, este do brasilianista Alfred Stepan, professor da Universidade de Columbia, foi Os militares na política. Huntington argumentava que, quanto mais profissionalizadas fossem as Forças Armadas, menos tenderiam a intervir na vida política.
Mais realista, Janowitz dizia que quanto mais as Forças Armadas se profissionalizassem, mais autonomia adquiririam em relação às sociedades nas quais estavam inseridas e mais motivos teriam para intervir na política, em detrimento do poder civil. Por fim, Stepan analisou o perfil dos generais brasileiros a partir de suas origens sociais e do perfil do quadro de oficiais.
No último parágrafo de seu livro, ele afirmou que a economia brasileira mais dia menos dia acarretaria problemas que os governos militares não conseguiriam enfrentar com sucesso, o que levaria as Forças Armadas a recuar na pretensão de assumir o papel de policy-maker, contentando-se, assim, em tentar assumir “uma forma modificada do papel moderador”.
Apesar de suas perspectivas metodológicas distintas, Janowitz e Stepan duvidavam da capacidade das Forças Armadas de se limitarem ao seu papel constitucional no âmbito da democracia. Dada a repercussão desses livros, quase certamente o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e outros oficiais de alta patente do Exército, da Marinha e da Aeronáutica já tinham ouvido falar a respeito de seus autores e do teor de suas análises.
Os mesmos autores também já deveriam estar sendo lidos nas academias militares quando o general Antonio Jorge Correa afirmou, em sua aula na ESG, que ela passaria a ser formadora de uma elite capaz de interpretar as “aspirações e os autênticos interesses nacionais”.
Quatro décadas e meia depois, porém, muito do que foi dito em sua exposição — inteiramente transcrita em corpo pequeno em duas páginas de O Estado de S. Paulo (edição de 9 de março de 1976, p. 16-17) — parece não ter dado certo.
Se academias e escolas militares cumprissem o papel enfatizado pelo ministro-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, o ignaro tenente que hoje reside no Palácio da Alvorada teria sido simplesmente expulso do Exército por seu despreparo e por sua disfuncionalidade. A solução contemporizadora que permitiu que ele fosse reformado na patente de capitão — abrindo-lhe assim caminho para que se convertesse em líder sindical da soldadesca e de oficiais de baixa patente e daí ascendesse à carreira política — até hoje é uma mácula indelével na imagem da Arma.
Igualmente, se as escolas e academias militares cumprissem os preceitos do general Antonio Jorge Correa, os generais que desde 2019 batem continência a esse capitão no Palácio do Planalto não confundiriam New Deal com o Plano Marshall.
Também não estariam indo muito além de suas atribuições funcionais nas áreas da defesa e da segurança nacional, agindo como inconsequentes coadjuvantes de uma estratégia de afronta permanente às instituições de direito, como o Supremo Tribunal Federal.
Tampouco estariam endossando a farsesca tentativa de promoção de uma auditoria paralela da próxima eleição, nem, muito menos, se calando frente à estratégia de seu superior para armar milícias partidárias e falanges ideológicas com o objetivo de tumultuar a realização das eleições. Também não estariam cogitando de propor uma negociação com o Tribunal Superior Eleitoral para que aceitasse as propostas das Forças Armadas sobre segurança das urnas eletrônicas, sob a justificativa de que isso evitaria reações bolsonaristas fora de controle no dia 7 de setembro — uma proposta que é sinônimo de ameaça ou chantagem.
Por fim, caso tivessem mais competência e responsabilidade cívica, o saldo que estão deixando após quase quatro anos de gestão não seria o desmanche dos setores estratégicos do poder público e a conversão do Brasil num país desmoralizado perante a comunidade internacional.
Quando a aula dada em 1976 pelo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas levou os analistas políticos a identificarem a pretensão dos militares brasileiros de ir além da atuação como um poder moderador, convertendo-se em policy-makers, o momento histórico já era preocupante e cinzento. Entre outros motivos, porque um mês e meio dessa aula um líder metalúrgico fora morto nas dependências do DOI-Codi, do antigo II Exército, em circunstâncias idênticas às da morte do jornalista Wladimir Herzog, no final de outubro de 1975.
Hoje, dias após a patética reunião com os embaixadores no Palácio da Alvorada, quando o capitão reformado e seu séquito de oficiais agiram moral e criminosamente contra o País sem se preocupar em esconder o roteiro de um golpe e de desqualificação da democracia, o momento histórico é muito mais do que sombrio.
É justamente por isso que a sociedade brasileira tem de fazer uma defesa intransigente da democracia, aproveitando a surpreendente repercussão dos manifestos que serão lidos no dia 11 de agosto no pátio da Faculdade de Direito da USP.
Texto originalmente publicado no Jornal da USP