Os outsiders do direito: uma nova forma de um ‘olhar coach’. Por Lenio Streck

Atualizado em 5 de setembro de 2024 às 10:06
O ex-coach e candidato à Prefeitura de SP Pablo Marçal durante debate na Band – Foto: Reprodução

Por Lenio Luiz Streck, advogado, jurista e professor de Direito

‘Assim não dá mais’

A política vem mostrando, não só no Brasil, um novo personagem: o outsider. É a pessoa que entra na política xingando a política e dizendo “que assim não dá mais”. Algo como os políticos que emergiram do lavajatismo, como Daniel Silveira, que ficou famoso por um “grande feito”: quebrou a placa com o nome de rua da vereadora assassinada Marielle Franco.

Pessoas que não se elegeriam como inspetores de quarteirão, mas que surfa(ra)m na onda dos “de fora da política” — os outsiders. Basta perguntar “quem é Gilson da Federal”, por exemplo.

Esse fenômeno se espalhou. Trata-se do paradoxo do mentiroso: todos os cretenses são mentirosos; mas quem disse a frase foi um cretense. Na política o outsider diz: “a política é um antro, é um estrume; mas eu sou político e não sou”. Ah, bom. O personagem Pablo Marçal é uma boa ou má amostra dessa fenomenologia. É autoexplicativo.

De como isso ‘encostou’ no direito

O que isso tem a ver com o direito contemporâneo? Muito. Basta ver as redes sociais e o tipo de discurso jurídico que hoje viceja (ups: palavra difícil para o ambiente) nesse meio ambiente.

“Não leia nada; atire fora os livros; assista a live de fulano; em 5 minutos aprenda a fazer um recurso; saiba como usar o ChatGPT; use um avatar no escritório; venha para a mentoria de sicrano; veja a última decisão do tribunal…”

Há uma bela charge que parece bem explicar o (esse tipo de) comportamento estúpido, digamos assim, no seu viés autodestrutivo:

 Tudo porque o modelo que “está aí” é algo como “a velha política” (sic).

Eis o novo. Lá vem o novo, como no poema de Brecht. Só que, sob as roupas do novo, vê-se os andrajos do velho. Bem velho.

Um dos produtos “revolucionários” dessa era “neopentecostal da prosperidade jurídica” é a simplificação da linguagem, que pode ser feita, segundo dizem, por meio (eles dizem “através”, como Alice Através do Espelho) do uso da Inteligência Artificial e correlatos (legal design, visual law, flechinhas, avatares de ChatGPT etc.). Algo semelhante a

“por que ler Alexis de Tocqueville se posso sacar política, economia, empreendedorismo e quejandices com as dicas do Thiago Luz e Gatilhos Mentais, Alberto Delsol e o desenvolvimento da mente, Não Sei Quem e Seja um Shark Tank…”

Isso é imitado no direito. Basta uma passadinha nas redes.

São os novos oráculos (não esqueçamos que o primeiro oráculo era um picareta, que enganou a esposa de um soldado dizendo que ele iria para a guerra, não pereceria e voltaria — Ibis, ridibis, non peribis, ibis; na medida em que o gajo morreu, o coach da época explicou: calma, eu disse ibis, ridibis non, peribis ibi — irás, retornarás não, perecerás lá). Pronto. Pablomarçalizou!

Vivemos a era daquilo que que o grande Bernd Rüthers (o coach perguntaria: quem?) vai chamar de “fobia metodológica”, caracterizando o que Meyer-Hayoz chama de “carência fundamental de fundamentos” (grundsätzliche Grundsatzlosigkeit). Quem sofre da fobia metodológica diz qualquer coisa sobre qualquer coisa. E quanto mais simples e direta, melhor. Por isso o sucesso da “linguagem coach-neopentecostal-jus-empreendorista”. Nesse ritmo, de tanto simplificar a linguagem e acelerar os vídeos e áudios, a linguagem desaparecerá, como no caso do cientista de Lagado, de Viagens de Gulliver.

E não esqueçamos também que tudo isso, essa era da simplificação, da platitutização, combina com a era do “fofismo”. Do afetivismo. O direito fofinho, que denunciei na coluna passada (ler aqui: O Brechó e a pablomarçalização do mundo). Há uma conspiração do fofo. Os fofistas estão chegando. Estão chegando os fofistas.

De todo modo, já perdemos. Marçal — a grande alegoria da década perdida para o neocoachismo — já venceu. Quem quiser entender esse fenômeno e essa fase da história tem de ler o best seller que um jovem escreveu no século 16, Discurso da Servidão Voluntária, o menino Etienne. Ou outro best seller escrito antes da Servidão Voluntária: a Nau dos Insensatos, traduzido para 35 línguas.

E não esqueçamos da denúncia de Hegel (não é o Engels, como pensou certo promotor há algum tempo) na Fenomenologia dos Espírito, acerca das “certezas sensíveis”. O senso comum é terrível. Ele (se) esconde. Por isso Darcy Ribeiro disse: Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda precisamos dessa classe de gente, os cientistas, para desvelar as obviedades do óbvio.

Ah, esse ladino óbvio!

Originalmente publicado em ConJur