O homem chega constrói seu arranha-céu, abandona-o mas não quer que ninguém o ocupe. É dele, propriedade privada, portanto faz daquilo o que bem entender. Se quiser deixar vazio por milênios, o problema é dele e ninguém tem nada a ver com isso.
Só que não.
O prédio de número 601 da av. São João, coração de São Paulo, quase ficou pronto em 1979. Quase. Durante a construção do previsto Aquarius Hotel morreu o proprietário, pai de sete filhos hoje donos do lugar. Os herdeiros não entraram num consenso para vender o imóvel. No impasse, o hotel ficou inacabado.
Trinta e cinco anos depois, o jamais inaugurado hotel ficou famoso na semana que passou e não pela qualidade de seus serviços ou conforto das acomodações e sim como palco de mais uma batalha entre movimento dos sem-teto e polícia militar.
Foi ocupado em março deste ano (e não pela primeira vez), mesmo mês em que a juíza Maria Fernanda Belli determinou a reintegração.
Para agilizar a questão, a juíza decidiu que cabia aos proprietários providenciar a remoção das famílias. O advogado do Aquarius Hotel afirma que seu cliente contratou 40 caminhões para levar objetos cadastrados a um depósito. A coordenadora do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto do Centro (MTSC), Ivonete de Araújo, discorda: “O proprietário não cumpriu. Ele prometeu 40 caminhões e 120 trabalhadores e não enviou. Como as pessoas vão sair? Como eles levarão seus móveis? Para onde eles vão? A Justiça não leva em conta a questão social.”
O último trecho do questionamento de Ivonete é crucial. Mesmo que o lado de lá tivesse cumprido com o acordo e chegado com o número de caminhões suficiente, para onde levaria as pessoas? Iriam morar dentro dos baús dos caminhões? Como se deflagra uma reintegração de posse sem uma realocação já definida pelas autoridades?
“Há um projeto no congresso engavetado há mais de dez anos de regulamentação de cumprimento de reintegração de posse que afirma que o juiz precisa visitar a área antes dar a canetada, que tem que fazer audiência prévia com todas as partes, que tem que haver um mínimo de civilidade e tentativa de diálogo antes de mandar a polícia que é a linha automática do judiciário. O judiciário consegue ser o poder mais conservador no país hoje”, afirmou Guilherme Boulos ao DCM.
A resistência culminou nas cenas terríveis de bombas lançadas para dentro do prédio, onde havia mulheres, crianças e idosos.
Mas vamos voltar à raiz do problema. Os prédios no centro da cidade precisam ser ocupados. Em minha opinião, até antes que os acampamentos formados nas periferias que são um contrasenso à atual discussão de mobilidade. Já estão em pé e basta uma reforma para propiciarem um teto digno. As ocupações em terrenos distantes demandam vários anos até que se assente o primeiro tijolo. As edificações ociosas e bem localizadas devem ser prioritárias. Dê um passeio pelo centro e veja quantos são os edifícios abandonados.
A quantidade de metros quadrados disponível na região atenderia uma imensa fatia da demanda por moradia popular, melhorando as condições de vida das pessoas. Segundo a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, o deficit de moradias na cidade de São Paulo era de 670 mil domicílios em 2013. Como a todo momento as pessoas se assentam em algum local e são logo depois expulsas, é provável que esse número se altere muito pouco de maneira positiva.
O confronto transmitido ao vivo por diversas emissoras de TV, fez os ouvidos deste colunista detectarem comentários grotescos. “É particular, tem que tirar mesmo!”, disse alguém.
É a cultura da propriedade privada em total desacordo com a função social. E isso é lei. Se a Constituição garante o direito de propriedade, ela também garante que a propriedade deve atender a uma função social.
Ora, não se tem notícias de invasão de residências ou de mansões do Morumbi. Ninguém está atrás disso. Pode ficar despreocupado, sua casa não será invadida. As ocupações são realizadas sempre em áreas abandonadas, que não cumprem seu papel, que possuem pendências com tributos na maioria das vezes. Não é terrorismo, é a necessidade aliada a uma ação responsável.
Atirar bombas em mulheres e crianças sim é terrorismo.
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