Em nenhuma outra área do governo a revolta dos servidores com os desatinos de Bolsonaro é mais aberta, pública, explicitada e sem volteios do que no Ministério do Meio Ambiente e em órgãos do sistema de proteção da Amazônia.
Se o desastre previsto para a floresta se confirmar, nos próximos anos, muitos servidores poderão dizer que nunca foram omissos. Tem muita gente do meio ambiente esperneando, apesar das retaliações.
E aí vem a pergunta que precisa ser abordada, mesmo que as respostas sejam complexas e evasivas: por que outras áreas do governo e do serviço público em geral não têm, como acontece agora e de novo no Meio Ambiente, a mesma capacidade de denunciar os crimes cometidos pelo governo?
Servidores do Ibama e de outros órgãos já denunciaram o desmonte dos seus quadros, para que grileiros, desmatadores, incendiários, garimpeiros e assassinos de índios possam agir com mais facilidade.
Agora, foi divulgado um documento que não aborda apenas as questões funcionais. É uma manifestação técnica encaminhada ao presidente do Ibama, Eduardo Bim, e ao presidente do Conselho da Amazônia, o general vice-presidente Hamilton Mourão.
O documento tem a assinatura de mais de 600 servidores do Ibama. Alerta para o aumento de 28% no desmatamento da Amazônia entre agosto de 2019 e julho de 2020, em comparação com o mesmo período em 2018-2019.
A advertência se baseia em carta divulgada há uma semana pela Associação Nacional de Servidores da Carreira de Especialista de Meio Ambiente (Ascema Nacional). A Amazônia, é o que eles dizem, está sendo destruída pelo governo que deveria protegê-la.
São os servidores falando diretamente com o que seria o comando da gestão da Amazônia, com um detalhe. Eles se dirigem ao presidente do Ibama e a Mourão, e não a Ricardo Salles.
O homem que prometeu a Bolsonaro que passaria a boiada é ignorado pelos funcionários de carreira. O Ibama tem 2,9 mil servidores. Os valentes 600 que assinaram a carta correm riscos que colegas de outras áreas do funcionalismo não desejam correr.
O risco maior é o da perseguição e do aniquilamento funcional, que já foi denunciado no próprio Ibama e em outros órgãos do sistema de proteção do meio ambiente.
A pesquisadora Lubia Vinhas, que coordenava o trabalho de monitoramento da devastação florestal no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foi exonerada há duas semanas porque incomodava os interesses da turma da boiada. O próprio diretor do Inpe, Ricardo Galvão, já havia sido demitido em agosto do ano passado.
Servidores considerados inconvenientes são exonerados de cargos de chefia, transferidos, jogados num canto, retirados de listas de promoção e muitas vezes submetidos a sindicâncias como represália.
Deve ser por isso que quadros de outras áreas do governo não se manifestam, na educação, nos direitos humanos, na diplomacia. Este ano, em reação corporativa, o Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério das Relações Exteriores (Sinditamaraty) reclamou da contratação de não diplomatas para a assessoria de Ernesto Araujo.
É uma questão da categoria. Não mexe com nada do interesse maior da diplomacia. Há uma quietude em áreas em que as ações do governo já são consideradas criminosas, como a da Saúde. Sindicatos da área denunciaram Bolsonaro em Haia.
Mas quem mais diz alguma coisa como reação interna, como afronta ao comando da área, como fazem os funcionários do Ibama ao dizerem publicamente, com dados, que não aceitam a submissão a uma liderança aliada dos criminosos?
Ninguém mais faz. É preciso que quadros de carreiras de outras áreas também se manifestem, para que o pessoal do Ibama não fique sozinho.