Originalmente publicado em OS DIVERGENTES
Por Weiller Diniz
Na indigente mitologia bolsonarista mercadejou-se uma galeria de entidades inexistentes, seres que habitam apenas o universo paralelo dos fiéis. Desde a campanha eles povoam o ideário fantasioso da seita, que transformou o onírico em pesadelo, o sonho em sobressalto e a fantasia em terror. Os anunciados unicórnios do capitão se metamorfosearam em flagelos. Quando as luzes se apagaram e a noite nos enlutou, muito nos foi subtraído: cidadania, dignidade, civilidade, respeito, mas sobretudo vidas reais. A falsa ilusão adulterou-se em desvarios febris, as promessas enganosas em trapaças fúnebres, a magia virou fraude, enevoada por tormentas golpistas.
As entidades imaginárias vão desde o tratamento precoce, isolamento vertical, um general atirando em vírus, o fim da corrupção e da mamata, o enterro do centrão e da fisiologia. O saldo do governo que rejeitou milhões de vacinas é aterrador: mais de 450 mil inocentes entregues a Caronte, o barqueiro sombrio da morte.
O ser mitológico imorredouro no Brasil é macabro e fatal. Atende pelo infausto nome de “tratamento precoce”, obscurantismo medieval do uso da cloroquina contra Covid-19. Já será muito difícil explicar às futuras gerações a bizarrice do capitão exibindo uma caixa do medicamento a uma ema. Não satisfeito com o próprio charlatanismo, na defesa do indefensável, transformou a medicação em política pública no combate à pandemia. Estimulou o aumento da produção em laboratórios oficiais, usou o Itamaraty para ampliar a importação de insumos e o ministério da Saúde recomendou o consumo. A CPI do Senado Federal investiga um ministério das sombras que ousou maquinar um decreto para fraudar a bula da cloroquina e prescrevê-la para a Covid-19. O maior aliado da cloroquina é o spray-milagroso da terra santa, outro transtorno mitômano.
Os delírios inumanos foram ao ponto de escalar um general, sabidamente despreparado, para guerrear contra o vírus. A tragédia Eduardo Pazuello na Saúde é a síntese do escárnio com a vida e do morticínio. Foi desautorizado publicamente na aquisição de 46 milhões de doses da vacina Coronavac, em outubro de 2020. Diante da CPI do Senado, desmascarado impiedosamente, mentiu e mentiu muito. Afirmou descaradamente “nunca o presidente me mandou desfazer qualquer contrato”. Referia-se ao “já mandei cancelar” de Bolsonaro sobre a Coronavac, ao qual ele respondeu com um vexatório “um manda, o outro obedece”. Três dias após o falso testemunho na CPI, Pazuello desfilou em um comício ao lado do capitão. Militar da ativa é proibido de participar de atos políticos. A celebração da anarquia foi óbvia e a disciplina militar atirada no esgoto. Também ajudaram a disseminar o vírus na iminência da 3 onda.
Em um dos vários picos de mortes e contágios, o capitão, pessoalmente, atuou na dublagem de outros unicórnios sepulcrais. Sabotando a ciência, conspirando contra o isolamento, as máscaras, confrontando os governadores e o STF inventou o “isolamento vertical”. Macaqueando Donald Trump e recorrendo a modelos fracassados, como o da Suécia, defendeu o inapreensível: “Pelo governo federal, no que depender de nós, estava tudo aberto, no isolamento vertical, e ponto final”. O Olimpo jurídico deu autonomia a estados e municípios contra o “ponto final”, que mais se assemelha à “solução final” nazista. Os confinamentos, mais ou menos restritivos, são eficazes até a imunização expressiva da sociedade. Araraquara é o maior exemplo no Brasil. No mundo há vários benefícios a partir das políticas corretas de isolamento.
Outras criaturas do mundo inferior bolsonarista também foram cultuadas na pandemia. Foram mais de 200 falas do capitão sabotando a ciência. Uma enciclopédia do obscurantismo: 27 declarações foram em favor do uso da cloroquina, 49 contra isolamento social, 26 hostilizando a imprensa, 30 defesas sobre prevalência da economia, 5 em desfavor do STF e contra o Congresso. Foram 35 declarações criticando os governadores, 6 questionando a eficácia das máscaras, 4 em defesa da imunidade de rebanho, 16 desqualificando o imunizante da Coronavac, 4 contra a vacina da Pfeizer, 2 falas com críticas à OMS, outras 2 contra o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e 1 estimulando a invasão de hospitais, entre outras insanidades. Na mitologia pantanosa foi criada a entidade “comunavirus”. O autor foi o diplomata que esfolou a diplomacia. Um Cíclope cego, que atende pelo nome de Ernesto Araújo.
A selvageria assassina no capitólio dos EUA, perpetrada por ogros simpatizantes de Donald Trump, assombrou o mundo e escancarou a barbárie do extremismo de direita após a eleição de Joe Biden. Aqui ensejou outro unicórnio irreal: a fraude eleitoral pré-datada. “O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora, basicamente qual foi o problema, a causa dessa crise toda: falta de confiança no voto. Lá, o pessoal votou e potencializaram o voto pelos Correios por causa da tal da pandemia e teve gente que votou três, quatro vezes. Mortos votaram, foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí, então a falta de confiança levou a esse problema que está acontecendo lá. E aqui no Brasil se tivermos o voto eletrônico em 22 vai ser a mesma coisa, a fraude existe”, bodejou o Sátiro para as próprias orelhas de asno, já que nos EUA o voto é impresso.
As ativações golpistas da sua base desmiolada são rotineiras e inverídicas, como as delirantes fraudes eleitorais. As quedas em todas as sondagens presidenciais, perda de aderência em redes sociais, uma CPI abrasiva, a sombra do impeachment e o afastamento gradual de aliados ensejaram um novo faz de conta sobre a vulnerabilidade das urnas eletrônicas. Elas representam a maior contribuição brasileira para a democracia moderna e são seguras. A alienação doentia tem a intenção de preservar os poucos devotos dos mitos, mentiras, cavernas e da terra plana. O voto impresso é a cortina de fumaça da desconfiança para tentar macular antecipadamente a credibilidade da eleição em 2022. Estão procurando chifre em cabeça de cavalo, já que a perspectiva é desfavorável aos adoradores dos unicórnios mortais.
“Não tem mais corrupção no governo”, regurgitou o capitão para turba ignara. Acabar a corrupção por decreto é outro falacioso canto da sereia. O ex-ministro do Turismo foi denunciado pelo laranjal do PSL. O partido que elegeu Bolsonaro é investigado também em outros estados. A Polícia Federal deflagrou a operação contra o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, madeireiros e servidores públicos, entre eles o presidente do Ibama, Eduardo Bim. Os investigadores apuram indícios consistentes de crimes como corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando. O Ministério da Saúde também está na mira e demitiu o coronel nomeado por Pazuello por contratos milionários e irregulares no Rio de Janeiro. O PGR engaveta tudo contra o capitão, mas os filhos são investigados. Um deles já foi denunciado por crimes de corrupção: peculato, lavagem de dinheiro, organização criminosa e apropriação indébita.
O então vice-líder do governo, Senador Francisco Rodrigues também foi alvo de uma busca e apreensão constrangedora. O escatológico baculejo da PF encontrou dinheiro nas nádegas do parlamentar da base de apoio a Bolsonaro e ícone de barro da nova política. A ministra Flávia Arruda é casada com José Roberto Arruda, cuja carreira política é sinônimo de condenações por corrupção. Ladravazes notórios, como os ex-presidiários Valdemar Costa Neto e Roberto Jefferson, são parceiros. Na campanha, os parlamentares do centrão eram chamados de ladrões. Hoje são aliados no “toma lá, dá cá”, que também tinha acabado por um decreto, já revogado no lendário reino bolsonarista. Os malfeitores o rodeiam, os delinquentes o circundam e os salteadores o protegem. O fim da corrupção não passou de outro mito.
Outra lenda é “a mamata acabou”, verbalizada com recorrência cínica. Há uma verdadeira farra de nepotismo da farda que se alinhou ao governo e expõem as Forças Armadas a desonras rotineiras. São reais também a despudorada dilapidação do dinheiro publico em férias e carnavais milionários, churrascos com picanhas de ouro, leite condensado, chicletes, R$ 3 bilhões do orçamento público privatizados secretamente entre amigos e o aumento do próprio salário acima do teto constitucional. Todos os filhos acumularam patrimônio suspeito, cuja licitude está sendo investigada em diversas instâncias. O trio evoca o Cérbero, o monstro de 3 cabeças, guardião das trevas no mundo inferior, onde estão guardados os R$ 89 mil depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, a Perséfone, rainha do mundo inferior.
Outra quimera foi a promessa de enxugar a quantidade de ministérios para 15 e preenchê-los com técnicos. Trapaça. Os técnicos foram Abraham Weintraub na Educação (semi-alfabetizado), Ricardo Salles no Meio Ambiente (exterminador de florestas), um general obtuso na Saúde e Paulo Guedes na Economia. O PIB é medíocre. O Brasil caiu da 9 para 12 no ranking econômico mundial, o desemprego aflige 14,8 milhões de pessoas e a fome ressurge ameaçadora. Houve fuga de capitais, a dívida pública explodiu, grandes fábricas fecham portas no Brasil, estrangulando as cadeias produtivas e o Real é uma das moedas mais desvalorizadas. A inflação ressurge com vigor, com aumentos de até 40% na cesta básica, com a majoração do gás de cozinha, arroz, feijão, carne e combustíveis. Paulo Guedes é um dos fabuladores, em larga escala, dos unicórnios mortais.
Quando o milagre gorou (apenas 1,1% PIB em 2019, na pré-pandemia), fabulou-se um tal PIB privado, uma fantasia tipo “contabilidade criativa” divorciando os números públicos do mundo privado para, talvez, extrair um dado positivo. O hábito de torturar os números até eles expressarem o que o intérprete exige, o Brilhante Ustra da economia. “Zerar o déficit publico em 1 ano” talvez tenha sido uma das maiores fantasias do ilusionista Paulo Guedes. Divide o posto com a previsão de derrotar a pandemia: “com R$ 5 bi a gente aniquila o vírus”. O país anda indiferente às fabulações recentes do ministro: “vai semana que vem”, diz com recorrência sobre quase tudo, “1 trilhão em privatizações”, “o Brasil vai surpreender”, “crescimento em V” e até mesmo a promessa de colocar o preço do gás a R$ 35. Todos os unicórnios de Guedes seguem invisíveis e fatais.
A galeria macabra dos pretensos mitos bolsonaristas é extensa, tosca, mortal e patética. O que aproxima os seres mitológicos da estrebaria governista é que alguns regrediram para a sustentação sobre quatro patas. Resgataram o antropomorfismo, de corpos humanos guiados por cabeças irracionais, parte homem, parte gado. Estão, cada vez mais, acossados em seus labirintos éticos, civilizatórios, humanos e autoritários. Hades os espreita. Exatamente como a besta-fera Minotauro, em nome de quem inocentes foram sacrificados. Ao contrário dos clássicos gregos e romanos, eternizados no tempo, os mitos bolsonaristas são finitos e não seguirão petrificando a existência dos brasileiros. Em breve serão Medusas decapitadas, Górgonas soterradas.