A guerra na Ucrânia completou um ano sem que se vislumbre o fim dos combates, sofrimento e destruição. De fato, a próxima fase da guerra pode setransformar em um banho de sangue e durar anos, já que os Estados Unidos e a Alemanha concordaram em fornecer tanques à Ucrânia e Volodymyr Zelensky incita o Ocidente a enviar mísseis de longo alcance e aviões de guerra.
Torna-se cada vez mais evidente que se trata de uma guerra entre os Estados Unidos/OTAN e a Rússia, afirma Noam Chomsky na entrevista concedida exclusivamente ao Truthout, que oferecemos a seguir, reprovando a ideia de que, frente à invasão russa da Ucrânia, é necessária uma OTAN mais forte, em vez de uma solução negociada para o conflito. “Aqueles que pedem uma OTAN mais forte talvez deveriam pensar no que a OTAN está fazendo, neste momento, e sobre qual imagem está oferecendo de si mesma”, diz Chomsky, alertando sobre “a ameaça crescente de uma escalada em direção à guerra nuclear”.
Chomsky é professor emérito do Departamento de Linguística e Filosofia do MIT, e professor de linguística e titular da Cátedra Agnese Nelms Haury, do Programa de Meio Ambiente e Justiça Social da Universidade do Arizona. Chomsky, um dos intelectuais mais citados e popular do mundo, considerado por milhões como um tesouro nacional e internacional, publicou mais de 150 livros sobre linguística, pensamento político e social, economia política, estudos de mídia, política externa estadunidense e atualidade mundial.
Seus últimos livros são Illegitimate Authority: Facingthe Challenges of Our Time (com C. J. Polychroniou; Haymarket Books, de publicação próxima); The Secretsof Words (com Andrea Moro; MIT Press, 2022); The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragilityof U.S. Power (com Vijay Prashad; The New Press, 2022); The Precipice: Neoliberalism, the Pandemic and the Urgent Need for Social Change (com C. J. Polychroniou; Haymarket Books, 2021); e Climate Crisisandthe Global Green New Deal: The Political Economyof Savingthe Planet (com Robert Polline C. J. Polychroniou; Verso 2020).
A entrevista é de C. J. Polychroniou, publicada originalmente por Truthout e reproduzida por Ctxt, 11-03-2023. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O primeiro aniversário da guerra na Ucrânia está se aproximando [a entrevista foi realizada antes desta data] e, além de não se enxergar o fim dos combates, o fluxo de armas dos Estados Unidos e da Alemanha para a Ucrânia também está aumentando. Cabe perguntar o que virá a seguir na agenda da OTAN/Estados Unidos: estimular o exército ucraniano a responder atacando Moscou e outras cidades russas? Como avalia os últimos acontecimentos no conflito entre a Rússia e a Ucrânia?
Podemos começar nos perguntando o que é que não está na agenda da OTAN/Estados Unidos. A resposta é fácil: os esforços para colocar fim ao horror, antes que seja muito pior. O “muito pior” começa com a crescente devastação da Ucrânia, que já é espantosa, embora não chegue nem perto da dimensão da invasão do Iraque pelos Estados Unidos e o Reino Unido e, claro, da destruição da Indochina pelos Estados Unidos, um ponto final no período posterior à Segunda Guerra Mundial.
E a lista dos casos mais relevantes não para por aí, longe disso. Para dar alguns exemplos menores, em fevereiro de 2023, a ONU estimava que cerca de 7.000 civis tinham morrido na Ucrânia. Sem dúvida, é uma estimativa muito baixa. Se a triplicarmos, chegaremos ao provável número de mortos da invasão israelense ao Líbano, em 1982, que foi apoiada pelos Estados Unidos. Se a multiplicarmos por 30, chegaremos ao número de vítimas do massacre perpetrado por Ronald Reagan na América Central, uma das pequenas incursões de Washington. E assim por diante.
Contudo, trata-se de um exercício inútil, de fato, desprezível segundo a doutrina ocidental. Como se atreve a mencionar os crimes do Ocidente, quando a tarefa oficial é denunciar que as atrocidades são exclusividade da Rússia! Além disso, para cada um de nossos crimes se dispõe facilmente de elaboradas apologias. Ao investigá-los, desmoronam-se rapidamente, como se demonstrou minuciosamente. Contudo, tudo isso é irrelevante dentro de um sistema doutrinário eficaz em que “as ideias impopulares podem ser silenciadas e os fatos incômodos podem ser ocultados sem a necessidade de qualquer proibição oficial”, para tomar emprestada a descrição da Inglaterra livre, de George Orwell, em sua introdução (inédita) para A revolução dos bichos.
No entanto, o “muito pior” vai muito além do desalentador balanço da Ucrânia. Também inclui aqueles que enfrentam a fome devido à redução de grãos e fertilizantes procedentes da rica região do Mar Negro; a crescente ameaça de uma escalada em direção à guerra nuclear (que significa guerra terminal); e possivelmente, o pior de tudo, o brusco retrocesso nos limitados esforços para evitar a iminente catástrofe do aquecimento global, que não deveria ser necessário revisar.
Infelizmente, sim, é necessário. Não podemos ignorar a euforia da indústria de combustíveis fósseis pelo aumento vertiginoso dos lucros e as tentadoras perspectivas de mais décadas de destruição da vida humana na Terra, enquanto abandona seu insignificante compromisso com a energia sustentável, conforme dispara a rentabilidade dos combustíveis fósseis.
E não podemos ignorar o sucesso do sistema de propaganda no momento de desviar essas preocupações das mentes das vítimas, a população em geral. A última pesquisa do Pew Research Center a respeito da opinião da população sobre temas urgentes nem sequer perguntava sobre a guerra nuclear. A mudança climática ocupava o último lugar da lista; entre os republicanos, 13%.
Afinal, trata-se apenas o assunto mais importante da história da humanidade, outra ideia impopular que foi eficazmente suprimida.
A pesquisa coincidiu com o último ajuste do Relógio do Juízo Final, que ficou a 90 segundos da meia-noite, outro recorde motivado pelas preocupações habituais: a guerra nuclear e a destruição do meio ambiente. Podemos acrescentar uma terceira preocupação: o silenciamento da consciência de que nossas instituições estão nos levando à catástrofe.
Voltemos ao tema que nos ocupa: como a política está sendo traçada para provocar algo “muito pior” por meio da escalada do conflito. A razão oficial dada permanece a mesma de antes: enfraquecer seriamente a Rússia. Os comentaristas liberais, no entanto, oferecem razões mais humanas: devemos garantir que a Ucrânia esteja em uma posição mais forte para possíveis negociações. Ou em uma posição mais fraca, uma alternativa que não é levada em conta, ainda que seja bastante realista.
Diante de argumentos tão contundentes como esses, devemos nos concentrar no envio de tanques estadunidenses e alemães, provavelmente logo também reatores, e uma participação mais direta dos Estados Unidos/OTAN na guerra.
O que provavelmente virá a seguir não se esconde. A imprensa acaba de informar que o Pentágono quer que se empreenda um programa ultrassecreto para inserir “equipamentos de controle” na Ucrânia com o objetivo de vigiar os movimentos das tropas. Também revelou que os Estados Unidos têm fornecido informações sobre alvos para todos os ataques com armas avançadas, “uma prática não revelada anteriormente que evidencia um papel mais ativo do Pentágono na guerra, do ponto de vista operacional”. Em algum momento, pode haver represálias russas, outra escalada.
Se persistir em seu rumo atual, a guerra justificará a opinião de grande parte do mundo fora do Ocidente de que se trata de uma guerra russo-estadunidense com cadáveres ucranianos, cada vez mais cadáveres. A opinião de que os Estados Unidos parecem estar lutando contra a Rússia até que caia o último ucraniano, para citar o embaixador Chas Freeman, reitera a conclusão de Diego Cordovez e Selig Harrison de que, nos anos 1980, os Estados Unidos lutavam contra a Rússia até que acabasse o último afegão.
A política oficial de enfraquecer seriamente a Rússia colheu verdadeiros êxitos. Como muitos comentaristas analisaram, com uma pequena fração de seu descomunal orçamento militar, os Estados Unidos, por meio da Ucrânia, estão degradando significativamente a capacidade militar de seu único adversário nesse campo, uma conquista nada desprezível. É um filão para os principais setores da economia estadunidense, incluindo a indústria de combustíveis fósseis e a militar.
No campo geopolítico, resolve – ao menos temporariamente – o que tem sido uma grande preocupação ao longo de todo o período posterior à Segunda Guerra Mundial: garantir que a Europa permaneça sob o controle estadunidense, dentro do sistema da OTAN, em vez de tomar um rumo independente e estabelecer uma relação mais estreita com seu parceiro comercial do Leste, rico em recursos naturais.
Temporariamente. Não está claro por quanto tempo o complexo sistema industrial europeu, de base alemã, estará disposto a enfrentar o declínio, inclusive, certa desindustrialização, ao se subordinar aos Estados Unidos e a seu lacaio britânico.
Existe alguma esperança de que os esforços diplomáticos evitem a tendência constante ao desastre da Ucrânia e outros lugares? Levando em conta a falta de interesse de Washington, os meios de comunicação pouco investigam, mas vazaram informações suficientes, de fontes ucranianas, estadunidenses e de outros países, que deixam razoavelmente claro que houve possibilidades, inclusive em data tão recente como o último mês de março. Já falamos delas no passado e seguem aparecendo indícios de diferentes aspectos.
Continua havendo oportunidades para a diplomacia? Como se pode prever, na medida em que os combates continuam, as posições endurecem. Nesse momento, as posições ucraniana e russa parecem irreconciliáveis. Não é uma situação nova no âmbito internacional. Muitas vezes, “as conversações de paz são possíveis quando existe a vontade política de iniciá-las”, que é a situação neste momento, como sugerem dois analistas finlandeses.
Na sequência, delineiam as medidas que podem ser tomadas para facilitar o caminho para um maior entendimento. Destacam com razão que em alguns círculos existe a vontade política: entre outros, o chefe do Estado-Maior Conjunto e altos membros do Conselho de Relações Exteriores. Até agora, no entanto, a difamação e a demonização são o método preferido para evitar esse afastamento do compromisso de caminhar para o “muito pior”, muitas vezes, acompanhadas por uma elevada retórica sobre a luta cósmica entre as forças da luz e a escuridão.
A retórica é muito familiar para aqueles que prestam atenção às façanhas dos Estados Unidos em todo o mundo. Podemos, por exemplo, recordar o apelo de Richard Nixon ao povo estadunidense para que se unisse a ele na pulverização do Camboja: “Se na hora da verdade, a nação mais poderosa do mundo, os Estados Unidos da América, agir como um gigante lamentável e indefeso, as forças do totalitarismo e da anarquia ameaçarão as nações livres e as instituições livres de todo o mundo”.
A mesma ladainha de sempre.
A invasão da Ucrânia por Putin, claramente, atingiu o seu limite, mas, como em qualquer guerra, a desonestidade, a propaganda e as mentiras surgem de todos os lados envolvidos. Em algumas ocasiões,as opiniões de alguns comentaristas também denotam uma loucura absoluta que, infelizmente, fazem passar como um discurso analítico digno de ser publicado nas páginas de opinião consideradas as mais importantes do mundo. “A Rússia deve perder esta guerra e ser desmilitarizada”, argumentavam os autores de um artigo recente, publicado no Project Syndicate. Além disso, afirmam que o Ocidente não quer ver a Rússia derrotada. Ecitam você como uma das pessoas que, de alguma forma, são ingênuas o suficiente para acreditarem na ideia de que o Ocidente é responsável por criar as condições que provocaram o ataque da Rússia à Ucrânia. Qual é a sua opinião acerca dessa “análise” da guerra na Ucrânia, que suponho que seja compartilhada não só pelos ucranianos, mas por muitas outras pessoas na Europa do Leste e nos países bálticos, sem falar dos Estados Unidos?
Não faz muito sentido perder tempo com a “loucura absoluta” que, neste caso, também supõe a devastação da Ucrânia e um prejuízo enormemente significativo. Contudo, não é uma loucura completa. Têm razão sobre mim, embora poderiam acrescentar que compartilham de minha opinião quase todos os historiadores e muitos destacados intelectuais políticos, desde os anos 1990, entre eles, destacados falcões, bem como a cúpula do corpo diplomático que sabe tudo sobre a Rússia, de George Kennan e o embaixador de Reagan, na Rússia, Jack Matlock, ao secretário de Defesa de Bush II, Robert Gates, o atual chefe da CIA e uma impressionante lista de pessoas. De fato, a lista inclui qualquer pessoa instruída capaz de revisar os registros históricos e diplomáticos muito claros, com a mente aberta.
Sem dúvida, vale a pena refletir seriamente sobre a história dos últimos trinta anos, desde que Bill Clinton iniciou uma nova Guerra Fria ao descumprir a promessa firme e inequívoca que os Estados Unidos fizeram a Mikhail Gorbachev, ao afirmar que “compreendemos a necessidade de oferecer garantias aos países do Leste. Se mantemos a presença em uma Alemanha que faz parte da OTAN, não se estende a jurisdição das forças da OTAN um centímetro ao leste”.
Quem quiser ignorar a história é livre para isso em prejuízo de não compreender o que está acontecendo agora e quais são as expectativas de evitar algo “muito pior”.
Outro capítulo infeliz da mentalidade humana em relação ao conflito russo-ucraniano é o grau de racismo manifestado por muitos comentaristas e responsáveis políticos do mundo ocidental. Sim, felizmente, os ucranianos que fogem de seu país têm sido acolhidos de braços abertos pelos países europeus que, é claro, não tratam da mesma forma aqueles que fogem de regiões da África e da Ásia (ou da América Central, no caso dos Estados Unidos) por causa da perseguição, instabilidade política e os conflitos, e o desejo de escapar da pobreza. De fato, é difícil ignorar o racismo escondido por trás do pensamento de muitos que afirmam quea invasão do Iraque pelos Estados Unidos não deve ser comparada à invasão da Ucrânia pela Rússia, pois os dois acontecimentos estão em um nível diferente. Esta é, por exemplo, a posição adotada pelo intelectual neoliberal polonês Adam Michnik, que, aliás, também cita você como uma das pessoas que cometem o pecado capital de não estabelecer distinções entre as duas invasões! Qual é a sua resposta para esse tipo de “análise intelectual”?
Fora da auto protetora bolha ocidental, o racismo é percebido de forma ainda mais cruel, como faz, por exemplo, a distinta escritora e ativista política/ensaísta indiana Arundhati Roy: “Sem dúvida, neste caso, a Ucrânia não é considerada um modelo de lição a seguir. Quando as pessoas bombardeadas ou atemorizadas são pardas ou negras, não importa, mas quando são pessoas brancas, parece que é diferente”.
Voltarei diretamente ao “pecado capital”, um aspecto muito revelador da cultura de elite contemporânea do Ocidente, imitado por conservadores em outros lugares.
No entanto, devemos reconhecer que a Europa do Leste é um caso um tanto especial. Por razões óbvias e familiares, as elites da Europa do Leste tendem a ser mais suscetíveis à propaganda estadunidense do que o normal. Nisso se baseia a distinção de Donald Rumsfeld entre a Velha e a Nova Europa. A velha Europa são os maus, aqueles que se negaram a se unir à invasão estadunidense ao Iraque, obstaculizados por ideias antiquadas sobre o direito internacional e a moral elementar. A Nova Europa, principalmente os antigos satélites russos, são os bons, livres desse obstáculo.
Por último, há inclusive alguns intelectuais “de esquerda” que adotaram a posição de que o mundo, diante da invasão russa da Ucrânia, precisa agora de uma OTAN mais forte e que não deve haver qualquer solução negociada para o conflito. Para mim, é difícil engolir a ideia de que alguém que afirma fazer parte da tradição radical de esquerda defenda a expansão da OTAN e seja a favor da continuação da guerra. Qual a sua opinião a respeito dessa posição “esquerdista”, particularmente estranha?
Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque e o Afeganistão, ao mesmo tempo em que atacavam a Sérvia e a Líbia, sempre sob pretextos, claro, de certo modo senti falta dos apelos da esquerda por uma reativação do Pacto de Varsóvia.
Aqueles que pedem uma OTAN mais forte talvez devessem pensar sobre o que a OTAN está fazendo nesse momento e também que imagem está oferecendo de si mesma. A última cúpula da OTAN estendeu o Atlântico Norte ao Indo-Pacífico, ou seja, ao mundo todo. O papel da OTAN é o de participar do projeto estadunidense de planejar uma guerra contra a China, que já é uma guerra econômica, uma vez que os Estados Unidos (e por obrigação, seus aliados) se dedicam a impedir o desenvolvimento econômico chinês com medidas voltadas a um possível confronto militar à espreita, mas não de muito longe. Mais uma vez, guerra terminal.
Já falamos sobre tudo isso antes. Há novos avanços, enquanto Europa, Coreia do Sul e Japão refletem sobre como evitar um grave declínio econômico, seguindo as ordens de Washington para reter a tecnologia da China, seu principal mercado.
Também não deixa de ser interessante ver a imagem que a OTAN está construindo orgulhosa de si mesma. Um exemplo instrutivo é a última aquisição da marinha estadunidense, o navio de assalto anfíbio USS Fallujah, batizado assim para comemorar os dois ataques dos fuzileiros navais a Fallujah, em 2004, um dos crimes mais atrozes da invasão estadunidense ao Iraque. É normal que os Estados imperiais ignorem ou busquem explicar seus crimes. É mais incomum ver como os celebram.
Quem está de fora nem sempre acha graça, incluindo os iraquianos. Refletindo sobre o lançamento do USS Fallujah, o jornalista iraquiano Nabil Salih descreve um campo de futebol conhecido como o Cemitério dos Mártires. É onde os moradores da cidade [de Fallujah], outrora assediada, enterraram as mulheres e crianças massacradas em repetidos ataques dos Estados Unidos para reprimir uma revolta furiosa que aconteceu nos primeiros anos da ocupação. No Iraque, até os parques infantis são agora locais de luto. A guerra significou para Fallujah banho de urânio empobrecido e fósforo branco.
“Contudo, o selvagerismo estadunidense não parou por aí”, continua Salih: “Depois de vinte anos de incalculáveis malformações congênitas, a marinha estadunidense batiza um de seus navios de guerra com o nome USS Fallujah… É assim que o império estadunidense continua sua guerra contra os iraquianos. O nome de Fallujah, embranquecido pelo fósforo branco implantado nos ventres das mães por gerações, é também um butim de guerra.
“Contra todos os prognósticos”, lê-se em uma declaração do império estadunidense em que explica a decisão de batizar um navio de guerra com o nome de Fallujah, “os fuzileiros navais se impuseram a um inimigo determinado que desfrutou todas as vantagens de se defender em uma área urbana”…O que fica é a estremecedora ausência dos membros das famílias, os lares bombardeados até fazê-los desaparecer e as fotografias incineradas junto com os rostos sorridentes. Em seu lugar, os criminosos de guerra impunes da Downing Street e Beltway nos legaram um sistema letalmente corrupto de camaradagem sectária.
Salih cita Walter Benjamin, com as Teses de Filosofia da História: “Quem saiu vitorioso participa até hoje da procissão triunfal em que os governantes atuais passam por cima dos que jazem prostrados”.
“Através deste revisionismo histórico”, conclui Salih, “os Estados Unidos lançaram outro ataque contra nossos mortos. Benjamin havia nos alertado: ‘Nem mesmo os mortos estarão a salvo do inimigo, caso ele vença”. O inimigo venceu”.
Essa é a verdadeira imagem da OTAN, conforme muitas vítimas podem atestar.
Contudo, o que os iraquianos ou outras pessoas pardas e negras como eles sabem? Para “A Verdade”, é possível recorrer a um escritor polonês que repete obedientemente a propaganda estadunidense mais vulgar ao fazer eco do que dizem muitos de seus colegas entre comissários políticos de seu país.
No entanto, sejamos justos. No momento do massacre, os meios de comunicação estadunidenses, sim, informaram sobre o que estava acontecendo. Não posso fazer mais do que citar detalhadamente a recopilação condenatória de grande parte dessa informação publicada pelo jornalista australiano John Menadue, em 2018:
No dia 16 de outubro de 2004, o Washington Post informou que “a eletricidade e a água foram cortadas na cidade, justamente quando começou uma nova onda de ataques [bombardeios], na noite de quinta-feira, medida também tomada pelas forças estadunidenses no início dos ataques a Najaf e Samarra”. Também se negou o acesso à Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias para fornecerem a ajuda mais básica: água, alimentos e suprimentos médicos de emergência à população civil.
No dia 7 de novembro, uma reportagem de capa do New York Times detalhava como a campanha terrestre da Coalizão iniciou com a tomada do único hospital de Fallujah: “Soldados armados retiraram rapidamente os pacientes e funcionários do hospital dos quartos e ordenaram que se sentassem ou deitassem no chão enquanto as tropas amarraram as suas mãos atrás das costas”. A reportagem também revelava o motivo do ataque ao hospital: “A ofensiva também acabou com o que, segundo os oficiais, era uma arma de propaganda para os militantes: o Hospital Geral de Fallujah com sua circulação de relatórios sobre baixas civis”. As duas clínicas médicas da cidade também foram bombardeadas e destruídas.
Em um editorial de novembro de 2005, em que se denunciava sua utilização, o New York Times descrevia o fósforo branco: “Embalado em um projétil de artilharia, explode sobre um campo de batalha e forma um brilho branco que pode iluminar as posições do inimigo. Também provoca uma chuva de bolas de substâncias químicas em chamas que grudam em tudo o que tocam e ardem até que o fornecimento de oxigênio pare. Podem queimar por horas dentro de um corpo humano”.
Em inícios de novembro de 2004, juntamente com a informação do New York Times de que o principal hospital de Fallujah havia sido atacado, a revista Nation se referiu a “relatos de que as forças armadas estadunidenses mataram dezenas de pacientes em um ataque a um centro de saúde de Fallujah e privaram os civis de atendimento médico, alimentos e água”.
A BBC informou, em 11 de novembro de 2004: “Sem água e eletricidade, nós nos sentimos completamente isolados dos outros… há mulheres e crianças jogadas pelas ruas. As pessoas estão cada vez mais fracas por causa da fome. Muitos morrem por causa de seus ferimentos, pois não resta nenhum tipo de assistência médica na cidade”.
No dia 14 de novembro de 2004, o jornal The Guardian informava: “As terríveis condições daqueles que permaneceram na cidade começaram a vir à luz, nas últimas 24 horas, conforme vai ficando evidente que as afirmações do exército estadunidense sobre a “precisão” dos ataques contra as posições insurgentes eram falsas… A cidade está há dias sem eletricidade e sem água”.
Isso é a OTAN para aquelas pessoas dispostas a saber como é o mundo.
Contudo, chega deste lamentável “e você mais”. As ordens de cima são que é ultrajante comparar o ataque do novo Hitler à Ucrânia com a equivocada, mas benigna missão misericordiosa dos Estados Unidos e o Reino Unido para ajudar os iraquianos, derrubando um ditador malvado, a quem os Estados Unidos apoiaram com entusiasmo até em seus piores crimes, mas isso não é próprio da classe intelectual.
Novamente, no entanto, devemos ser justos. Nem todos concordam que é incorreto fazer perguntas sobre a missão dos Estados Unidos no Iraque. Recentemente, houve muito alvoroço porque Harvard recusou o diretor da Human Rights Watch, Kenneth Roth, para um cargo na Kennedy School, que rapidamente mudou de opinião por causa dos protestos. As credenciais de Roth foram elogiadas. Inclusive, em um debate moderado pela conhecida defensora dos direitos humanos, Samantha Power, posicionou-se contra que a invasão do Iraque fosse classificada como intervenção humanitária. (Michael Ignatieff, diretor do Carr Center for Human Rights, argumentou que, sim, cumpria os requisitos).
Temos sorte que, no cume do mundo intelectual, nossa cultura seja tão livre e aberta que podemos até debater se tal operação foi um exercício de humanitarismo.
Os indisciplinados poderiam se perguntar como reagiríamos diante de um evento análogo na Universidade de Moscou.
Originalmente publicado por Truthout e traduzido pela Unisinos