Pacote anti-indígena ressuscita, e o marco temporal é só a ponta do iceberg. Por Leonardo Sakamoto

Atualizado em 15 de dezembro de 2023 às 0:33
Índigena de costas, olhando para o Congresso Nacional
BRASÍLIA, DF, 24.04.2019 – Indígenas montam acampamento no gramado da Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso Nacional, em Brasília (DF)
Imagem: Pedro Ladeira/Folhapress

Por Leonardo Sakamoto

O Congresso Nacional derrubou, nesta quinta (14), vetos de Lula a um pacote legislativo que retira proteções a povos indígenas e reduz os seus direitos territoriais. Apesar de ter tramitado sob o nome de “PL do Marco Temporal”, esse ponto é apenas uma das mudanças trazidas pelo texto. E, ironicamente, é a que pode ser derrubada mais facilmente pelo Supremo Tribunal Federal.

Entre os deputados federais, foram 321 contra os vetos, 137 a favor e uma abstenção. E entre os senadores, 53 contra e 19 a favor.

A tese do marco temporal, defendida por ruralistas, afirma que somente terras ocupadas por indígenas na época da promulgação da Constituição Federal, ou seja, em 5 de outubro de 1988, podem ser reivindicadas para a demarcação. Isso desconsidera que povos estavam expulsos de suas terras contra sua vontade naquele momento.

Por conta disso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) batizou o projeto de “PL do Genocídio”.

O Supremo derrubou a tese com nove ministros contra e apenas André Mendonça e Kassio Nunes Marques, indicados por Jair Bolsonaro, a favor. Em resposta, a bancada ruralista já propôs uma emenda para inserir o marco na Constituição.

Muito provavelmente a parte do marco temporal em si deve ser declarada inconstitucional quando o tema for levado ao STF – e será, o que deve abrir novo flanco de batalha entre poderes. O Ministério dos Povos Indígenas informou à coluna que vai acionar a Advocacia-Geral da União para entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) a fim de garantir que a decisão já tomada pela corte seja respeitada.

Para o ministério, a decisão do Congresso vai contra os acordos para mitigar as mudanças climáticas dos quais o Brasil é signatário dois dias após o encerramento da COP-28, a cúpula das Nações Unidas sobre o tema, em Dubai. E lembrou que os territórios indígenas são os que possuem maior taxa de preservação de cobertura florestal no país.

No evento, Lula criticou a bancada ruralista e indicou que a derrubada de seus vetos era possível dada a configuração das forças políticas no Brasil.

Os vetos foram mantidos sobre três temas. Ou seja, serão engavetados (por ora):

a) O que permitia contato com indígenas isolados, ou seja, aqueles que não têm interação sistemática com o restante da sociedade, para “intermediar ação estatal de utilidade pública”. O que cabe nisso? Muita coisa, dado que o termo é amplo. E o contato pode ser feito por “entidades particulares, nacionais ou internacionais”, como missões religiosas. Há o risco de doenças para as quais o sistema imunológico deles não está preparado como o nosso.

b) O que previa a retomada de territórios indígenas caso ocorresse “alteração dos traços culturais da comunidade”. Se o governante de plantão achar que uma comunidade indígena deixou de parecer suficientemente indígena, ele poderia pedir a terra de volta.

c) E aquele que autorizava o cultivo de transgênicos em territórios indígenas, o que hoje é proibido. Isso poderia levar à contaminação de sementes e espécies nativas usadas pelos povos tradicionais.

Contudo, o Congresso derrubou o veto de Lula tanto ao marco temporal quanto a uma série de outros dispositivos. Por exemplo, o pacote:

1) Proíbe a ampliação de terras já demarcadas, evitando corrigir erros do passado cometidos por pressão do poder econômico.

2) Facilita a contestação da demarcação de novos territórios indígenas, colocando os processos em um Dia da Marmota que nunca termina.

3) Prevê dispensa de consulta prévia dos indígenas para instalar bases militares, construir hidrelétricas e “proteger” riquezas consideradas estratégicas.

4) Facilita que o poder público instale rodovias, ferrovias, redes de comunicação, linhas de transmissão de energia elétrica em terras indígenas mesmo sem a concordância dos povos que vivem lá.

5) Permite que, no caso de terras indígenas superpostas a unidades de conservação ambiental, a gestão fique com o órgão federal gestor da área protegida. O ideal seria o contrário, uma vez que áreas indígenas costumam preservar mais.

6) Autoriza a celebração de contratos para a cooperação de indígenas e não-indígenas para agricultura e pecuária em suas terras – o que autoriza, na prática, o controle de atividade econômica por terceiros.

7) Garante que ocupantes não-indígenas possam ficar no território até a conclusão do processo de demarcação, sem limite de uso. Lideranças apontam que isso dificulta a retirada de invasores e facilita até a ação do crime organizado.

Para além de colocar em risco a vida dos povos indígenas e as metas de cumprimento dos acordo climáticos pelo Brasil (enquanto temos seca na Amazônia, cheias no Sul e as ondas frequentes de calor), os dispositivos que se tornam lei após a derrubada do veto presidencial são uma sinalização de que a agropecuária brasileira não está preocupada em fechar o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia.

Pois o impacto social e ambiental trazido pelas “inovações” presentes no texto podem afastar os investimentos que o país almeja receber ou os mercados que pretende abrir. Pois, em um momento em que o governo brasileiro tenta evitar que condicionantes estejam no tratado, a derrubada desses vetos é um recado claro de que o Brasil não está pronto para garantir a oferta de produtos limpos.

A oposição bolsonarista celebrou a queda dos vetos como uma derrota do governo Lula. Na verdade, mais do que apenas uma pancada nos direitos dos indígenas, pode ser uma tragédia para a economia brasileira.

Publicado originalmente em UOL

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