Publicado no Vermelho
Aos 71 anos, o sacerdote Júlio Lancellotti – o padre “rebelde” da paróquia São Miguel Arcanjo, da Arquidiocese de São Paulo – entrou na mira das hordas bolsonaristas. Vítima constante de ameaças por seu apoio a segmentos vulneráveis – como a população em situação de rua, os LGBTQI+, pessoas com HIV e jovens encarcerados –, Lancellotti foi processado até pelo presidente Jair Bolsonaro, a quem chamou “racista, machista e homofóbico”.
Em ano de eleições municipais, o “padre dos povos de rua” afirma, em entrevista à revista Veja, que “a sociedade em muito já se emancipou do moralismo”. Ainda que os apoiadores de Bolsonaro tentem impor uma pauta moral no debate político, Lancellotti vê avanços.
“Em algumas eleições passadas, falar de camisinha ou anticoncepcional era uma celeuma. Hoje, ninguém liga mais. Acho que essa coisa moral é uma bela desculpa para esconder o neofascismo, o autoritarismo e o rechaço aos pobres”, dispara o padre.
“Se a pessoa diz ‘sou contra o aborto, mas não me importo que mate os índios. Sou contra o aborto, mas não sou contra o genocídio da juventude negra. Sou contra o aborto, mas não sou contra a higienização racial’, tem alguma coisa de errada nisso. Se sou contra o aborto, sou contra toda a forma de violência, porque aquele que não foi abortado, agora é chacinado”, agrega.
Lancellotti saiu em defesa do padre Edson Adélio Tagliaferro, da cidade de Artur Nogueira, na região metropolitana de Campinas (SP). Nas redes sociais, viralizou, recentemente, um vídeo em que Edson afirma que quem votou em Jair Bolsonaro nas eleições 2018 “cometeu um pecado” e deveria se confessar. Para Lancellotti, trata-se apenas de “uma linguagem religiosa usada para chamar atenção para a responsabilidade social dos seus atos”.
“Nunca vi ninguém confessar que apoiou uma forma política, econômica e social que causou a fome de tantos”, declarou. “Ninguém virá no confessionário falar que votou no Bolsonaro, mas é necessário entender que as nossas escolhas têm consequências e ninguém deve votar pensando somente em si, mas pensando nos indígenas, nos quilombolas, na comunidade LGBTQI+, nos desempregados.”
Para Lancellotti, tampouco é válida a tese de que católicos teriam votado em peso em Bolsonaro por conta de sua agenda contra o aborto. “Essa desculpa de que votou em alguém por causa de aborto é uma cortina de fumaça. Ninguém está pensando em aborto na hora de votar – é uma falsa bandeira”, diz. “É uma cortina de fumaça moralista que empobrece a discussão, usada por neopentecostais para enganar o povo.”
O padre provoca: “Que ótimo a pessoa ser contra o aborto – mas ela protege e defende as mulheres violentadas? Sabe se o candidato em questão é misógino e acha que feminicídio é invenção da esquerda? A discussão sobre o tema não pode ser desvinculada do corpo, da dignidade e da vida da mulher”.
Tachado de “comunista” pela extrema-direita e até por setores mais conservadores da Igreja Católica, Lancellotti não passa recibo. “É a mesma coisa que a China descobrir a vacina para o novo coronavírus e a gente dizer ‘não vamos tomar porque os chineses são comunistas’”, afirma. Em sua opinião, “o marxismo tem pontos que diferem da doutrina cristã, mas não é o inventor da luta de classes. Hoje, em alguns países, priorizamos o capital à vida”.
Ele também declara que a patrulha contra os marxistas é hipócrita. “Temos instrumentos de análise da realidade e o marxismo é um deles. Não cabe a nós negar o método porque foi utilizado por uma ideologia inadequada”, opina. “Seria o mesmo que não aceitar nenhum princípio humanista do iluminismo francês porque eles eram anticlericais, rejeitar a psicanálise porque Freud era ateu ou a relatividade de Einstein porque não era católico. Levando tudo ao pé da letra, eu não poderia ler Jorge Amado, Érico Veríssimo, Victor Hugo. Seria um avestruz enterrado com a cabeça no chão.”
Defensor do ecumenismo, Lancellotti ignora os ataques que sofreu após aparecer ao lado de uma mãe de santo em uma foto: “Eu peço a benção a todas as mães de santo. Temos que ter o compromisso de apoiar e defender as religiões de matriz africana, não importa o conteúdo delas. Defender as religiões de matriz africana, judeus, budistas, ou seja, o debate ecumênico, é fundamental na compreensão da igreja e do cristianismo”.
É com esse raciocínio que Lancellotti defende a agenda do Papa Francisco e critica os adversários internos do pontífice. “O Santo Padre tem mais importância fora da Igreja do que dentro dela e corre mais risco no Estado do Vaticano que no Estado Islâmico, por causa desse conservadorismo – esse sectarismo que faz as pessoas se acharem melhores que as outras”. Segundo Lancellotti, “Francisco é uma pessoa simples e aberta. Fazem com ele como fizeram com São Francisco: ninguém andava atrás dele soltando passarinhos. Sentiam raiva dele e o maltratavam porque ele contestava a burguesia”.
Com informações da revista Veja