João Carlos dos Santos é solteiro e tem 30 anos. Luana, 38, é casada com Alexandre, 35, e juntos cuidam de três filhos: Alícia, 4, Ana Clara, 6, e José Vitor, 9. Aos 46, Ivanilson cuida de Caleus, 14, desde que a mulher desapareceu após um surto psicótico. Wagner, 44, é solteiro. Vive solitário. Melkon, 52, conseguiu tratamento em São Paulo para uma tuberculose aguda. Sem mulher, vive longe do filho Philipe, de 17 anos.
Sem nenhuma relação entre si, essas pessoas têm um encontro marcado todos dias, de segunda a segunda, às 7h, na Rua Siqueira Cardoso, 277, no bairro da Mooca, em São Paulo.
É ali que formam fila e pegam senha para tomar o café da manhã oferecido pela Paróquia São Miguel Arcanjo, dirigida por Júlio Lancellotti, o ‘padre maloqueiro’, como o próprio gosta de dizer.
“Agora consegui espaço num abrigo aqui ao lado, e esse café da manhã é muitas vezes minha única refeição no dia”, conta João Carlos.
Nesta terça, 11, o desjejum consistia em dois pães, um pedaço de panetone, um copo de leite e uma caixinha de Nescau.
Ele está a procura de emprego desde o início da pandemia. Tentou arriscar a sorte no Rio, mas voltou. “Está pior que aqui”, diz.
Luana se vira nos 30 para dar conta da vida, ela e o marido desempregados. Luana é cozinheira e Alexandre, frentista. Dividem dois colchões de solteiro com os três filhos no baixo do viaduto Salim Farah Maluf, ali nas proximidades.
Na pandemia, perderam o emprego, o pouco dinheiro que restou e por fim a casa onde moravam de aluguél.
“Não nos restou outra alternativa”, diz, conformada. “Sem esse apoio não sei o que seria da gente”.
Nesta terça, foi sozinha pegar o café da manhã enquanto o marido seguiu com as crianças para outro canto.
É agradecida. “Este local é o nosso refúgio”, diz, lembrando que pelo menos a cada dois dias vem com marido e filhos para tomar banho.
Desempregada há dois anos, não perde a esperança.
“Somos de luta”, diz. “Qualquer serviço que aparecer a gente encara. O problema é que as portas são fechadas para pessoas como nós”.
Enquanto conversa com o DCM, Ivanilson vê os voluntários distribuindo os alimentos, enquanto padre Júlio vai cortando nacos generosos de panetone.
“Eu o conheci na rua”, conta. “É o nosso escudo. Quem nos dá atenção, quem nos escuta”. Pergunto onde mora. “Eu? Qualquer calçada por aqui é o meu lugar”.
A situação de Wagner dos Santos é um pouco diferente.
Ele apareceu pela primeira vez para o desjejum oferecido pela Paróquia. Funcionário no setor de cargas do aeroporto de Congonhas, está há 15 dias sem aparecer no serviço.
“É o álcool”, explica ao DCM. “Agora que consegui melhorar, passei para comer alguma coisa e ir lá, ver se eles me aceitam de volta”.
Wagner diz que trabalha de carteira assinada e não deu satisfação à chefia quando decidiu faltar e ficar pelas ruas se embriagando. “O vício é mais forte que a gente. Preciso me tratar e me cuidar”, explica, resignado.
O caso de Melkon não envolve bebida, mas doença.
Ele nasceu em Santana, zona Norte da capital, e foi criado em Arujá, na Grande São Paulo. Teria como morar com a mãe, que cuida do seu filho, mas foi apenas em São Paulo que conseguiu tratamento para uma tuberculose que não dá descanso.
Os médicos lhe disseram que a cura leva no mínimo um ano e meio. Isso se todos os protocolos forem seguidos com rigor. “Por enquanto não tenho outra alternativa. Tomo remédios controlados e tenho de ir ao hospital todos os dias”, diz ele, que teve a sorte de encontrar uma vaga fixa em um albergue.
No final do café, padre Júlio junta todos os alimentos que sobram, põe no carrinho de supermercado que ele mesmo empura e segue para a calçada, onde é cercado por dezenas de pessoas.
– Você arrumou treta, Guilherme, é isso?, diz em tom de brincadeira para um sujeito deitado na calçada.
É informado que o ‘rapa’ está na área, escoltado por três viaturas da Guarda Municipal. Vai em direção do pelotão e saca o celular.
– Eles gostam de tirar fotos. Eu também, diz, sem se intimidar.
E então, sem falar com os profissionais da prefeitura, seguido por dezenas de pessoas, fica indo e voltando com seu carrinho até que a turma decide ir embora.
– É sempre assim, ele conta. Quando estou por aqui até aliviam, mas é comum levarem os pertences das pessoas, com a justificativa de que estão limpando a cidade.
A distância entre a Paróquia e o centro comunitário onde serve o café da manhã é de 500 metros, ou quatro quarteirões e meio. O próprio padre pilota seu carrinho, enquanto vai convesando e acolhendo os pedidos.
De volta, senta-se em frente a um banco onde expõe roupas, sapatos e outras coisas que vai doando.
Reclama:
– Tá todo mundo bem vestido aí? Ninguém precisa desssa calça?
Um resolve abusar e passar a mão no que for possível.
– Montou loja aonde?, brinca Júlio. Depois me passa o endereço que eu quero conhecer.
Por que o carrinho de pipoca?
Enquanto pegam as doações e conversam com o padre, muitos aproveitam para tomar água.
A Paróquia de São Miguel Arcanjo tem dois bebedouros: um desses de ferro que a gente aperta um botão e sai água e outro maior, onde muitos chegam a se lavar.
É possivelmente a única Paroquia de São Paulo dotada de um bebedouro assim.
Numa reunião de padres, Júlio sugeriu que outros fizessem o mesmo.
– A melhor resposta que tive foi um que perguntou se eu ia pagar a conta para ele, lembra, sem perder o bom humor.
Júlio é falante, atencioso, bem humorado. Atende a todos com disposição. Seja um toxicodependente com uma narrativa confusa ou uma mãe de família que traz o filho para ser abençoado.
Fecha a nave da igreja e manda abrir a cada minuto, conforme as pessoas vão chegando e fazendo alguma solicitação.
Planos, além de seguir, com as próprias pernas, mantendo sua obra?
– Minha próxima iniciativa é construir um carrinho de pipoca, confidencia.
– Mas num ambiente de miséria e fome, padre, por que um carrinho de pipoca?, pergunto.
– A ideia é distender o drama das pessoas, integrar, ele explica. A pipoca e o carrinho são coisas que remetem à infancia, ao aconhego da família. As pessoas não precisam apenas de pão. Elas precisam ser acolhidas, se reconhecerem no ambiente social, se integrarem umas com as outras. Eu já sou conhecido como o padre maloqueiro, agora também serei o padre pipoqueiro.
Dizer mais o que de uma pessoa assim?
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