Um leitor do DCM me enviou o seguinte relato sobre o estado de coisas na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul:
O episódio que aconteceu na abertura do “Integra UFMS” não surpreende a mim e nem a inúmeros colegas de docência, mas nos revolta.
Este que foi anunciado como sendo “o maior evento de Ciência, Tecnologia, Inovação e Empreendedorismo do estado de Mato Grosso do Sul” teve como palestra inaugural “A viabilidade da evolução à luz da Química”, proferida por Marcos Nogueira Eberlin.
Tudo ali estava errado, já que Eberlin é um notório defensor do criacionismo e um dos divulgadores da Teoria do Design Inteligente (sabe-se lá o que isso quer dizer).
Como seu histórico anunciava, ele disse uma série de impropérios em relação à evolução e alucinações religiosas sem qualquer base científica, sob os aplausos, elogios e honrarias do pró-reitor de Extensão, Cultura e Esportes da UFMS, Marcelo Fernandes Pereira, deixando claro o perfeito alinhamento da atual gestão ao pensamento anti-ciência que também povoa o governo federal.
Vou ter de voltar um pouco no tempo e lhe contar que sou professor da UFMS desde meados dos anos 90. A Universidade Federal de Mato Grosso do Sul é multicampi, a maior e mais importante instituição de ensino universitário e pesquisa do Estado.
Eu também me formei aqui, fiz mestrado fora e pouco tempo depois estava de volta concursado como docente. Lá se vão quase 30 anos.
Em alguns períodos dividi minha atuação em outras universidades pelo mundo, o que foi fundamental para compreender as diferenças, e posso dizer que conheço bem como deveria ser uma boa gestão universitária. A
A administração da UFMS passa sempre de um reitor que apoia para o próximo, que passa para o próximo, numa eterna corrida com troca de bastão, sem qualquer alternância de poder. O ambiente é viciado. E, desde 2016, a situação tem se agravado sobremaneira.
Neste 2020, em meio à pandemia, o atual reitor, já há quatro anos no cargo, correu para iniciar mais um processo eleitoral sem maior envolvimento da comunidade, virtual e sobretudo rápido, exatos 31 dias desde a inscrição das chapas até o dia da votação.
Este será o quinto ano sob esta mesma gestão, que tem sido marcada por controvérsias, autoritarismos e especialmente pelo alinhamento ao governo federal, seja ele qual for. Após a vitória do atual presidente, a reitoria tem demonstrado estar disposta a uma conduta ainda mais ditatorial.
Vimos isso de maneira clara no ano passado em diversos episódios de agressão aos estudantes. Em março de 2019, a Reitoria desalojou o Diretório Central dos Estudantes (DCE), aliás todos os espaços de discussão sobre a vida acadêmica estão sendo exterminados.
Os Centro Acadêmicos agora são Atléticas, onde apenas o esporte é valorizado, e qualquer discussão política ou de reflexão sobre a comunidade universitária não é estimulada ou é cerceada. Cabe à Universidade distribuir bolas e fazer festas juninas.
Em seguida, em maio daquele ano, com os cortes de 30% no orçamento das universidades, os estudantes fizeram uma manifestação pacífica reivindicando posicionamento da administração frente aos ataques à educação.
Eles exigiam da Reitoria uma resposta em defesa dos investimentos em projetos, laboratórios, pediam a contratação de professores, redução do preço no restaurante universitário — demandas pertinentes ao ambiente acadêmico e legitimamente defendidas pelo grupo de estudantes, que decidiu, como forma de chamar atenção, ocupar uma das unidades da Universidade.
Foram três dias de espera e não foram sequer recebidos. O mesmo aconteceu em setembro, em uma manifestação contrária ao lançamento do programa Future-se. Desta vez a reação do reitor foi ainda mais autoritária que, além de não dialogar, ordenou o corte da água e da luz da unidade durante todo o tempo da ocupação.
Uma manifestação pacífica, com atividades de caráter científico, palestras com professores, intervenções artísticas, provocou a ira da administração que decidiu recorrer à justiça para silenciar a voz democrática dos alunos com uma ação de reintegração de posse.
Vimos uma Universidade expulsar seus estudantes de dentro dela mesma. Eles entenderam que era um abuso ver uma Universidade “invadida” por seus estudantes! Esta é a UFMS atual.
Não bastasse processar administrativamente seus estudantes, tirando de alguns inclusive o direito de colar grau, a administração ainda encaminhou o processo à Polícia Federal, que de imediato passou a intimar os estudantes a depor. O processo administrativo foi suspenso por conta da pandemia, mas a PF segue intimando e ouvindo os estudantes.
Assim como o movimento estudantil, o movimento sindical dos docentes, do qual faço parte, e também o movimento sindical dos funcionários, vêm sofrendo hostilidades e criminalizações constantes, desproporcionais, despropositadas em diversos episódios.
O autoritarismo é mensagem clara nesta gestão, sem qualquer constrangimento. O reitor deixa claro que ele nomeia apenas “parceiros”, assim a votação nas unidades para eleição de diretores é apenas uma encenação, já que é o reitor quem escolhe. O mais grotesco dos exemplos ocorreu na Faculdade de Medicina, no final de 2019.
O candidato à direção eleito pela consulta à comunidade obteve cerca de 90% dos votos, e além disso tinha maior experiência para o cargo, mas mesmo assim o reitor nomeou um candidato sem voto algum, apenas por estar alinhado à Reitoria e a políticos importantes em nível municipal e estadual. Esse é apenas um dentre tantos exemplos.
Esses episódios, e mais um amontoado de desmandos e desrespeitos diários mostram as dificuldades que docentes, funcionários e estudantes que querem fazer ciência têm enfrentado ao se deparar com um ambiente universitário completamente avesso ao diferente, autoritário ao extremo, favorável à aniquilação de pensamentos dissonantes, adepto à perseguição e repressão, tornando a UFMS um local pouco apropriado ao desenvolvimento do pensamento crítico.
Uma universidade que, infelizmente, não podemos dizer que é digna desse nome.
Estamos exaustos, amigo, mas seguiremos na luta!