Pandemia, despejos, reintegrações e por que “a propriedade obriga”! Por Lenio Streck

Atualizado em 24 de novembro de 2022 às 9:25
Bandeira do Brasil – Foto: Reprodução

Por Lenio Streck

1. Um pouco de história

Enquanto o Brasil implementava seu primeiro Código Civil (a partir de 1916), em que se colocava a propriedade como mercadoria e sem função social, países como Alemanha já pensavam mais longe: a propriedade obriga; seu uso deve ademais servir ao bem comum, dizia a segunda parte do artigo 153 (Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich Dienst sein für das Gemeine Beste).

O marco simbólico da função social da propriedade demorou a se fazer marco normativo no Brasil. E sabemos como as “consequências sempre vêm depois” com conflitos agrários e falta de moradias nas cidades.

A Constituição de 1988 buscou resgatar o tempo perdido. O marco normativo passou a servir de norte para as lutas pela terra e moradia. Veja-se que além da função social da propriedade (artigo 5º, inciso XXIII da Constituição), temos o direito fundamental (atentemos para a força da palavra) à moradia.

Claro que ninguém pensa em fazer um mandado de segurança exigindo o direito subjetivo de o Estado construir casas ou a determinar um pedaço de terra. Todavia, as normas constitucionais vinculam de outro modo. Limitam ações e ao mesmo tempo as estimulam. O direito é limitação ao poder. Leituras instrumentais do direito não percebem isso. Mas leituras ultraliberais do direito percebem apenas isso. Direito não é  limitação ao poder. É condição de possibilidade. Não é o instrumento. Mas não é só barreira. É filtragem institucional.

2. O papel do STF no impedimento de despejos e reintegrações

O que quero dizer é que, em crises como a pandêmica, a Suprema Corte brasileira fez bem em usar os dispositivos constitucionais para impedir despejos e reintegrações. O direito importa. O direito deve servir para algo, sem ser instrumentalizado. Esse difícil equilíbrio é o que marca o Estado de Direito.

Agora, com a pandemia debelada (há controvérsias: eu continuo a usar máscara), terminou o prazo adotado pelo STF. E os despejos voltam…

Mas deveriam, de fato, voltar? Não necessariamente. Vejamos.

Em decisão do dia 31 de outubro, o ministro Roberto Barroso fixou critérios para casos de reintegração de posse antes da tomada de decisões judiciais. Barroso determinou que a Justiça deve criar comissões de conflitos fundiários para analisar esses casos. Isto é: os despejos e reintegrações tem limites. Porque a propriedade obriga. Tem função social.

A decisão de Barroso estabelece ainda que antes da tomada de medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis as autoridades devem:

  • ouvir previamente representantes das comunidades afetadas;
  • executar as ações a partir de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida;
  • direcionar as pessoas de vulnerabilidade social para abrigos públicos ou assegurar medida eficaz para resguardar o direito à moradia;
  • não podem separar de membros de uma mesma família.

Correta preocupação: o Estado não deve medir esforços para reduzir os impactos habitacionais e humanitários em casos de desocupação coletiva.

Para ser mais simples: agora o STF estabeleceu a necessidade de um regime de transição para o caso das ocupações coletivas. A ideia é que essas comissões de conflitos fundiários realizem visitas técnicas, audiências de mediação e, principalmente, apresente uma proposta de retomada para a execução de decisões suspensas pelas decisões anteriores do STF.

Disse o ministro: “A retomada das reintegrações de posse deve se dar de forma responsável, cautelosa e com respeito aos direitos fundamentais em jogo. Por isso, em atenção a todos os interesses em disputa, é preciso estabelecer um regime de transição para a progressiva retomada das reintegrações de posse”.

3. Os sem-teto, os sem-terra, os vulneráveis, a pandemia e a função social da propriedade

Correto: a propriedade obriga! Para registro, segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, o Brasil passou a ter quase 40 mil “novos moradores de rua” desde o início da pandemia.

Todavia, Barroso autorizou a retomada do regime legal para ações de despejo em caso de locações individuais sem necessidade de regras de transição. De todo modo, ainda assim, sempre há que se levar em conta a função social da propriedade. Há, pois, limites dependendo de cada caso. Afinal, há que se fazer o cotejo entre o direito de propriedade e o direito fundamental à moradia.

Existe uma dimensão de dignidade nisso tudo. Não é porque a dogmática rasa fez uma vulgata de um “princípio da dignidade da pessoa humana”, no qual cabe tudo e qualquer coisa, que a dignidade não signifique nada…! Se o direito não servir para sacralizar a dignidade humana, o que é o Estado de Direito?

É bem verdade que há uma grita em alguns setores da política, que dizem: “O STF, comunista, acabou com o direito de propriedade”. Bom, já vi gente dizendo que o STF mandaria tirar as crianças das famílias (pausa para risos – uma vereadora em Porto Alegre “denunciava” isso dias atrás).

Ora, o que o STF fez foi cumprir a Constituição. Mais: todas as famílias em vulnerabilidade possuem proteção constitucional. Caso contrário, qual seria o sentido das garantais constitucionais? A CF é norma. Vincula. Mesmo no caso de despejo individual, existe a proteção do direito fundamental à moradia, presente no artigo 6º, caput, expressamente, o qual, sem ser direito subjetivo diretamente exigível, tem a função clara de servir de blindagem contra arbitrariedades. Blindagem contra o arbítrio: é essa a essência do Direito numa democracia. O critério de blindagem é a Constituição.

Afinal, qual é o sentido de termos uma Constituição que trata de tamanhas garantias e, ao mesmo tempo, permitirmos que pessoas possam virar moradores de rua da noite para o dia? Seria a Constituição apenas uma folha de papel?

Assumem relevância, nesse contexto, as defensorias, os tribunais estaduais, o CNJ e o CNMP. A decisão do STF manda construir critérios e modos de atravessar essa crise.

4. Não, o STF não extinguiu a propriedade e nem vai mandar tirar os filhos dos pais (pausa para boas risadas)

Tudo levando em conta o que diz a Constituição — estatuto jurídico do político e remédio contra maiorias. Não, o STF não extinguiu o direito de propriedade. Só não dá para usar e gozar da propriedade como se estivéssemos na República Velha. Simples assim. O Direito só o é em seu tempo. Essa é uma das chaves de leitura para entender por que minha teoria é chamada de Crítica Hermenêutica do Direito.

O que quero argumentar, em síntese, é que o direito à propriedade, no Estado social contemporâneo — legatário do antigo paradigma do modelo de Estado liberal-individualista —, construiu-se, desde Weimar, uma nova baliza para a propriedade. Uma baliza contemporânea, que pode vir a ser adequada a um contexto de modernidade tardia, própria para uma sociedade de risco (Ulrich Beck) em um país periférico afetado pelas mazelas socioeconômicas pandêmicas. Ora, qual é o sentido das promessas do constitucionalismo se o Direito não obriga?

Ora, não há um “conflito” entre o “direito à propriedade”, abstrato e absoluto, e um direito à dignidade que não permite que as pessoas sejam simplesmente colocadas numa posição de vulnerabilidade extremada do dia para noite.

Sendo mais claro: não é “direito à propriedade” versus “dignidade das pessoas”. Se minha concepção de propriedade não dá conta de acomodar a dignidade humana, é porque não era uma boa concepção de direito à propriedade. Há uma unidade no valor. Esse é o busílis.

Para frisar, o que defendo neste texto não é um argumento de justiça social, mas sim, um argumento principiológico, pois essa baliza que se construiu desde Weimar e agora deve ser aprimorada pela jurisdição constitucional é jurídica. É uma questão de direito. Não se trata de “juízes legislando”, ou “abolindo a propriedade privada”, como gritam as Eríneas contemporâneas (homo whatszapiens), mas sim uma applicatio oriunda da melhor criteriologia para uma jurisdição constitucional preocupada em sintetizar uma norma constitucional. Por isso é tão importante que a baliza contemporânea do conceito de propriedade seja feita a partir da CF, e não contra ela.

Eis a minha contribuição inicial para esse importante debate social que se inicia.

Publicado orginalmente em CONJUR

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