Publicado originalmente na Rede Brasil Atual
Depois da aprovação da PEC 6/2019, a reforma da Previdência, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ), o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), se apressou na tramitação da proposta e já anunciou o deputado federal Marcelo Ramos (PR-AM) como presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência e o deputado Samuel Moreira (PSDB-SP) como relator.
A celeridade de Maia e a presença do tucano na relatoria deixam claro que a principal aposta do politicamente frágil governo Jair Bolsonaro passa a ser o apoio dos setores neoliberais e lideranças político-partidárias importantes. E que a PEC da Previdência une a direita e a centro-direita do Congresso. Bolsonaro, enfim, abandona a “nova política”.
“Em parte o PSDB, o PR e outros de direita e centro-direita apoiam porque a reforma tem diretrizes programáticas, pró-mercado, menos Estado para dar conta das questões sociais. Tudo isso faz esses partidos programaticamente apoiarem”, diz a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, da Universidade Federal de São Carlos.
Mas a vitória final do governo – a aprovação da reforma no Plenário, o que exige quórum de 3/5 dos deputados – ainda está distante, até porque Bolsonaro hoje não tem maioria tão significativa. “Agora ele vai tentar atrair o Centrão para seu campo de influência”, diz a analista. Para ela, a oscilação de grupos como o Centrão mostra que o governo ainda não tem consistência parlamentar.
Depois de mais de três meses de governo, Bolsonaro agora já usa todos os meios políticos disponíveis na “velha política”, que ele combateu na campanha e nos primeiros meses de governo. Emblema disso é o próprio fato de que ele oferece R$ 40 milhões em emendas parlamentares – o que é jurídica e politicamente legítimo – para os deputados que votarem a favor da reforma.
Mas Bolsonaro não combateu a “velha política” apenas como discurso de campanha. “Na verdade, para mim, com essa proposta de ‘nova política’, o que ele não queria era dividir poder. Não é à toa que organizou um governo com setores desvinculados de partidos, com militares, o grupo dos economistas, os liberais”, avalia Maria do Socorro, em entrevista à RBA.
No contexto atual, para ela, a esquerda e a centro-esquerda não podem mais perder tempo. “As oposições vão ter que se reorganizar, porque não podem contar com o Centrão, como contaram em alguns momentos em que as derrotas (do governo) vieram (na CCJ). Mas essa oscilação de grupos como o Centrão mostra que o governo ainda não tem consistência parlamentar.”
Bolsonaro se rendeu explicitamente à “velha política” – o que ele disse que não ia praticar – para fazer andar a PEC da Previdência na Câmara. O que diz dessa contradição?
A estratégia que ele utiliza agora tem a ver com a dificuldade em fazer coalizão. Ele construiu uma narrativa usando o fato de a população avaliar a classe política muito negativamente. Se elegeu com essa narrativa de que era a nova política: “não vamos mais negociar dessa forma”. Só que ele mistura tudo e tentou dar conta daquilo com que parte do eleitorado se sentia mais preocupada e desencorajada pela política.
Tentando se descolar da realidade que acusa de ser “velha política”…
Só que ele mistura as esferas, porque a gente sabe que fazer política em qualquer sistema requer negociações. Deve ter pensado no tal “estelionato eleitoral”. “Eu disse uma coisa e agora vou fazer outra”? Então ele manteve a mesma narrativa até recentemente. Na verdade, para mim, com essa proposta de “nova política”, o que ele não queria era dividir poder. Não é à toa que organizou um governo com setores desvinculados de partidos, os militares, o grupo dos economistas, os liberais. Mas também tem os políticos, tanto que o DEM vai apoiar, assim como parte do PSDB, o PR.
Uma coisa é a narrativa de disputa eleitoral, outra é a governabilidade. Nessa nova fase ele já sabe que, se não faz as alianças, não vai dar em nada. E não é algo pejorativo, isso é política. O que é política senão negociação?. Ele está vendo que precisa do Legislativo e de uma maioria. Essa ideia de nova e velha política não faz sentido. Parece vir de uma pessoa que não conhece o sistema político brasileiro, como se dá uma negociação.
Embora tenha sido deputado por quase 30 anos…
Mas como ele era do baixo clero, parece que ficou fazendo outras coisas, ou foi no fluxo do que se decidia no grupo dele. Mas nunca participou de nenhum grande partido, fazia parte de uma maioria de políticos que compunha o baixo clero, que são satélites de outras lideranças. Agora ele vai tentar atrair o Centrão para seu campo de influência. Mas não só, porque o PSDB e o PR já aceitaram os cargos na comissão especial da Previdência. Não é à toa que estão aí. Há os interesses da ala liberal e dos economistas do governo.
E esses apoios, como do PSDB, mostram a importância da reforma da Previdência para o governo e esses grupos neoliberais… Tanto que estão se unindo.
Pelo menos boa parte do PSDB. Não sei até que ponto o PSDB vai inteiro. Mas a tendência é apoiar a reforma. Talvez façam mudanças que aliviem em algum setor, mas a tendência dos partidos de direita e centro-direita é apoiar.
O presidente começou negociações no varejo, atendendo individualmente as lideranças por mais de três semanas e agora, a partir do acordo a que chegaram sobre a reforma da Previdência, essa base deve dar sustentação a outros projetos, como o do “anticrime” do Ministro da Justiça.
Sobre a negociação como aspecto natural da política, à qual Bolsonaro aderiu, qual o limiar entre esse tipo de negociação e o fisiologismo, o toma lá, dá cá?
O Executivo tem suas prerrogativas, concentração de poder muito grande, e pode lidar com essa troca por cargos. Hoje tem uma legislação que, bem ou mal, organizou melhor essa questão da distribuição das emendas. A própria Dilma tentou segurar isso, o que causou um certo mal estar na classe política. Mas onde é esse limiar? Quando entra dinheiro é complicado, mas dinheiro do ponto de vista de compra mesmo, para fazer passar certas emendas ou projetos. O que acontece hoje é que o Bolsonaro não tem partidos que lhe deem maioria. Ele não colocou os partidos nos ministérios para governar com ele. Como não fez isso, tentou negociar o segundo escalão.
Agora tem que fazer essas negociações no varejo. O que pode se transformar em fisiológico são trocas por outras vantagens que não sejam as que estão dentro do métier, digamos assim. O que vem sendo negociado são cargos, emendas e prerrogativas de que o governo pode lançar mão, o que está na legislação e não significa que seja fisiologismo, mas significa que, por conta do início do governo, ele vai ter que buscar formas de ter maioria. Se entrarem moedas de troca que não sejam as que já vêm sendo negociadas, aí começamos a ter problemas de fisiologismo. Mas por enquanto não me parece que ele chegou a esse limiar. O que a gente pode dizer é que não dá mais para ele defender que tenha uma nova política no país. Não tem.
Ou seja, ele teve que se render porque reconhece que o governo é fraco politicamente…
Exatamente, e o que ele vai alegar para o eleitor “de raiz” é que a classe política não ajuda se ele não “trocar”, não “negociar”. Ele ainda tem algo a dizer a esse eleitorado. Tanto que, pelas pesquisas, 51% das pessoas aprovam “a maneira de governar” dele e 35% aprovam o governo. Depois de tudo isso que a gente já acompanhou até hoje, é de surpreender. A pesquisa é amostra, a gente não sabe mito bem os detalhes das abordagens, mas, de todo modo, aponta que ele ainda tem um apoio considerável. Ele está se fiando também nisso.
A reforma da Previdência está caminhando nas comissões, mas ele conseguirá 3/5 do Plenário para aprovar?
Por enquanto a gente sabe que não tem esses votos, ainda é muito frágil essa base e ele vai ter que negociar muito mais para ter consistência, ter esses 3/5. As oposições vão ter que se reorganizar, porque não podem contar com o Centrão, como contaram em alguns momentos em que as derrotas (do governo) vieram. Mas essa oscilação de grupos como o Centrão mostra que o governo não tem consistência parlamentar.
Vamos ver a partir de agora, com a criação da comissão especial. Quanto mais apoio o governo tiver para passar mais rapidamente, no prazo que tinham no horizonte, maior a tendência de terem essa base.
Se eles conseguirem uma maioria muito rápido, significa que o governo conseguiu se reorganizar, o que não parecia que ia acontecer até duas semanas, talvez uma semana atrás. É muito importante que a oposição se reorganize o mais rápido possível, porque está fragmentada, o que ajuda muito o governo.
Mas a oposição não atuou unida na CCJ para votar a Previdência?
Ali sim, mas até o Centrão se uniu a ela numa certa fase. Vamos ver agora, que o governo começa a se utilizar de todos os recursos. Em parte o PSDB, o PR e outros de direita e centro-direita apoiam porque a reforma tem diretrizes programáticas, pró-mercado, menos presença do Estado nas questões sociais. Tudo isso faz esses partidos programaticamente apoiarem. Pelo menos em relação à reforma da Previdência, há consenso entre eles.