Para desmontar o bolsonarismo. Por João Feres Júnior

Atualizado em 3 de novembro de 2022 às 20:00
Manifestação bolsonarista em Brasília.
Hugo Barreto/ Metrópoles

Por João Feres Júnior*

Sempre digo aos jornalistas que me procuram em época de eleição: infelizmente, a bola de cristal que encomendei por uma bagatela do Ali Express ainda não chegou. Contudo, eles insistem em demandar previsões sobre o futuro político do nosso país. A mais frequente é acerca do futuro do bolsonarismo.

Só posso utilizar o conhecimento acumulado sobre o bolsonarismo para ensaiar esse exercício de futurologia. Em meados de 2021, coordenei no âmbito do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública (LEMEP), junto com a cientista política Carolina de Paula, uma pesquisa qualitativa de alcance nacional com grupos focais de pessoas que haviam votado em Bolsonaro em 2018, cujos resultados podem ser encontrados nesse link. Essa pesquisa serve de base ao exercício feito no presente artigo, juntamente com informações colhidas de outras pesquisas qualitativas feitas pelo LEMEP ao longo de 2022 e algumas análises quantitativas que venho produzindo a partir de micro dados de pesquisas de institutos conhecidos.

Primeiramente, é preciso ter em mente que os bolsonaristas radicais são minoria entre os eleitores de Bolsonaro. Aqueles que apoiam golpe militar então são a minoria da minoria. É recomendável entender os eleitores de um candidato como uma cebola, na qual as camadas mais externas, e maiores, são compostas por aqueles que estão mais longe do centro. Ou seja, segundo a metáfora, a maioria dos bolsonaristas não são super-reacionários ou autoritários militaristas, mas antipetistas convictos, que, mesmo perante os descalabros de Bolsonaro e de seu governo, ainda insistem em rejeitar Lula e seu partido. Basta vermos o número pífio de pessoas que se dispõem a ir às estradas bloquear o trânsito: somente a militância radicalizada.

Em segundo lugar, é importante notar que o bolsonarismo é um fenômeno político e de opinião que vai muito além dos conteúdos de suas mensagens. Os analistas de plantão se esfalfam em discutir o significado preciso do discurso bolsonarista, estabelecer a correta combinação entre valores conservadores, autoritarismo e neoliberalismo, mas esse é um exercício em boa medida inútil para a tarefa que se coloca à frente: o desmonte do bolsonarismo. É claro que nas hostes de seguidores do ex-presidente encontramos em profusão discursos ligados a esses temas, mas é preciso entender que a lógica de funcionamento desse “movimento” não está propriamente na sedução de seus argumentos, em sua maioria de péssima qualidade lógica e fática, mas na estrutura comunicacional que os promove.

O bolsonarismo é, antes de tudo, uma esfera comunicacional baseada pelo menos em três pilares principais: (1) o Gabinete do Ódio, entendido aqui como uma rede mais ou menos centralizada de produtores de conteúdo digital que disseminam ativamente narrativas bolsonaristas sobre os principais fatos da política; (2) os meios de comunicação tradicionais cooptados, além das inúmeras rádios e pequenos jornais Brasil afora, as empresas de mídia Record, SBT, Rede TV e Jovem Pan, cada uma proprietária de uma pluralidade de meios; e (3) as igrejas evangélicas associadas.

Parafraseando o hoje quase esquecido profeta acadêmico Marshall McLuhan, o bolsonarismo precisa ser entendido muito mais como meio do que como mensagem. E o que deve acontecer com esse aparato ideológico (perdão pelo empréstimo terminológico e pela rima)?

O Gabinete do Ódio não vai poder operar mais no Palácio do Planalto. Ele terá que ser transplantado para a “sociedade civil”, e funcionar às expensas de doações de empresários benevolentes, coisa que já acontecia ao longo do governo Bolsonaro. Aqui está um ponto nevrálgico: é preciso continuar o desenvolvimento de instrumentos estatais de controle e repressão à prática da disseminação de fake News, e isso requer uma mobilização dos três poderes: o legislativo aprovando leis mais adequadas para o cerceamento dessa atividade criminosa, que foquem não somente em sua produção e disseminação, mas em seu financiamento; o sistema de justiça estabelecendo padrões de procedimentos para investigar e julgar (judiciário) e investigar e processar (Ministério Público) tais práticas; e o poder executivo criando um braço de inteligência digital capaz detectar a movimentação criminosa do Gabinete e de suas sucursais. Mas, acima de tudo, é preciso que os três poderes, e principalmente o executivo e o judiciário, estabeleçam um padrão de relacionamento com as big techs das redes sociais para que aperfeiçoem critérios efetivos de autorregulação de práticas criminosas. Aí as armas de convencimento devem ir desde a conversa franca e cortês até o uso de dispositivos legais para fazer valer práticas democráticas.

As empresas de mídia bolsonaristas, por seu turno, tendem a se reconfigurar após a derrota de Bolsonaro. A Joven Pan deu a partida, despedindo parte de sua corja de militantes reacionários disfarçados de jornalistas. Ratinho, dono do SBT do Paraná, já vem fazendo menções a Lula desde a campanha. Em suma, o caminho aqui deve ser de relativa distensão, inclusive porque as grandes mídias dependem em parte de verbas públicas de publicidade do Governo Federal.

Mas não podemos nos esquecer que, no âmbito da grande imprensa, o problema também reside nos canais que foram mais benevolentes em relação à candidatura Lula durante o pleito, pela primeira vez na história desse país, isto é, Globo, Folha, Bandeirantes e alguns mais. Foi essa imprensa tradicional, muito mais que Record e SBT, que apostaram na Lava Jato para derrubar o governo do PT, promoveram abertamente o movimento em prol do impeachment de Dilma, e criaram o caldo cultural de forte rejeição à representação política do qual se alimentou o bolsonarismo. Nada garante que em sua sanha de defender os interesses do “mercado” em detrimento do povo brasileiro, mais especificamente, em restringir o gasto público e advogar pela privatização do aparato estatal, esses canais de mídia não irão voltar às suas velhas práticas de promover cotidianamente o desgaste do governo petista, distorcendo criminosamente o debate público acerca das questões mais importantes para a vida coletiva em nosso país, prática em tudo similar às fake news. Ou pior, pois a distorção provém de canais supostamente “autorizados”.

O PT, por seu lado, somente tentou resistir à campanha negativa que a grande imprensa lhe moveu ao longo de seus quatro governos, nada fazendo de propositivo para mudar as regras do jogo. Se adotar novamente uma estratégia meramente reativa, corremos o risco de deixarmos a história se repetir. A grande imprensa certamente vai buscar um substituto funcional para os tucanos, favorecidos pela cobertura jornalística, eleição após eleição, ao longo de toda a Nova República. Candidatos não faltam – Eduardo Leite, Simone Tebet, Geraldo Alckmin –, mas o resultado dessa repetição trágica da história será certamente a volta ao poder do capitão ou de algum outro ser da mesma estirpe teratológica.

E aqui fica um breve parêntesis para aqueles que pensam que, nos dias de hoje, a imprensa tradicional é irrelevante perante a internet. 60% dos brasileiros ainda têm a televisão como sua principal fonte de informação política. Os grandes meios de comunicação são responsáveis pela quase totalidade do conteúdo jornalístico produzido no país. Os jornais impressos são de fato muito pouco lidos, mas as mesmas empresas que os produzem são proprietárias dos mais frequentados portais informativos da internet. Esses portais continuam liderando os rankings de sites de informação mais visitados. E, por fim, as elites políticas, administrativas, judiciais, empresariais e intelectuais de nosso país ainda são ávidas consumidoras do jornalismo tradicional, e mais, pautam boa parte de seu comportamento a partir das opiniões e fatos que recebem dele. Não nos esqueçamos que o bolsonarismo não abriu mão de cooptar seus canais tradicionais de mídia. Já, dentro da esquerda, há ainda os que sofrem da ilusão alucinatória de que, não somente o bolsonarismo é um fenômeno exclusivo das redes sociais, mas também a solução do problema da comunicação política do governo Lula pode ser produzida exclusivamente por meio das redes sociais. Ledo engano!

Por fim vamos falar das igrejas evangélicas, ou melhor, da esfera comunicativa própria das igrejas evangélicas. Ela é formada não somente pelo púlpito de muitas congregações, que se prestam à militância política e à manipulação eleitoral, mas pelo vasto cabedal de canais de comunicação que essas instituições têm com seus fiéis, que vão de grandes empresas de comunicação, como a Record, a rádios, jornais, tempo em outros canais de televisão etc. Como nossa pesquisa sobre o bolsonarismo mostrou, as igrejas funcionam também como hubs para a formação de grupos de serviço de mensageria (WhatsApp, Telegram, etc) que mantém os fiéis dentro da esfera comunicacional, recebendo reiteradamente as narrativas e informações que ali circulam.

Nesse caso, o desmantelamento do bolsonarismo precisa ser ativamente buscado por meio do estabelecimento de pontes de negociação e conversa com os líderes evangélicos. Sabemos que a estrutura organizacional de cada igreja é em geral bastante hierárquica (sem trocadilhos, por favor), mas que, ao mesmo tempo, há uma profusão de denominações. A tarefa requer, portanto, conhecimento do campo e sensibilidade. Essa é uma tarefa muito mais política do que propriamente estatal. Nem todos os evangélicos são bolsonaristas, muitos rejeitam o capitão veementemente; e nem todos evangélicos bolsonaristas são radicais. Ou seja, há espaço para negociação. Tudo que digo aqui sobre os evangélicos se aplica também para as frações ultraconservadoras da Igreja Católica. Mas há necessidade de ação estatal também. As igrejas muitas vezes se utilizam do direito à liberdade religiosa para escaparem da regulação. Contudo, as regras para coibir a disseminação do discurso de ódio e das fake news, discutidas acima, devem valer para todos, inclusive para os cristãos bolsonaristas.

Essa foi uma breve incursão no conteúdo do guia prático “Para desmontar o bolsonarismo”. Muito mais pode ser dito acerca desse tema tão importante. Contudo, mais do que fazer exercícios futurológicos é importante que essa tarefa seja levada a cabo com a utilização paralela de instrumentos de monitoramento da opinião pública, particularmente daqueles grupos sociais mais afetados pelo bolsonarismo. A intuição, o gut feeling, só nos leva até a esquina. Mas precisamos ir muito mais longe. Para encontrarmos esse caminho é preciso alguma luz, e essa luz só pode advir da razão bem empregada no conhecimento das coisas do mundo. Tal conclusão pode parecer tomada de um tom excessivamente iluminista para um tempo presente enfiado na turvação da pós-modernidade, na qual tudo é relativo, tudo é versão, mas é exatamente disso que se trata.

*João Feres Júnior é cientista político da UERJ e coordenador do Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública (LEMEP).

Publicado originalmente na Rede Estação Democracia

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