PUBLICADO NO PORTAL BRASIL DE FATO
Nascido no Rio de Janeiro em 1956, João Vicente Fontella Goulart – ou João Goulart Filho – viveu parte de sua infância e adolescência no Uruguai, acompanhando seus pais: Maria Thereza e Jango, presidente deposto pelo golpe militar de 1964. Foi um dos fundadores do Partido Democrático Trabalhista (PDT) ao lado do tio Leonel Brizola.
Deixou a sigla em 2017, após o PDT permanecer na gestão de Rodrigo Rollemberg (PSB) no governo do Distrito Federal. A polêmica se deu pela recusa do então governador em construir Memorial da Liberdade e Democracia – Presidente João Goulart. No ano seguinte, foi candidato à Presidência da República pelo Partido Pátria Livre, organização herdeira do MR-8. Hoje, a legenda se prepara para um processo de fusão com o PC do B – as duas não atingiram individualmente o número de parlamentares necessários para superar a chamada cláusula de barreira.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Goulart filho rechaça as posições de Jair Bolsonaro em relação à celebração do golpe de 64, bem como a ideia, advogada por parcelas do governo, de que a ação dos militares foi um “contra-golpe”, evitando a instauração do comunismo no país.
Confira abaixo.
Brasil de Fato: Você esperava que o Brasil passasse por um momento em que ditadura militar voltasse a ser vista positivamente no espaço público? Como reagiu à declaração de Bolsonaro?
João Goulart Filho: Sinceramente, não me surpreendeu em nada, partindo de quem partiu essa posição. Isso vem a confirmar, mais uma vez, da falta de sensibilidade política do presidente Bolsonaro. Ele continua em campanha política, não desceu ainda do palanque.
No momento em que se deveria falar na pacificação nacional, na reunificação das divergências ideológicas que naturalmente emanam na democracia, ele continua com esse tom belicoso, que não corresponde à atitude de presidente da nação. Ele é presidente de todos, não só do grupo miliciano e “tuiteiro” que ele teve na campanha. Não tenho dúvida que ele vai continuar fazendo essas grandes palhaçadas.
Essa insistência de negar a academia já é uma espécie de brincadeira. É tomar de conta que as universidades, que os documentos hoje liberados pelo Departamento de Estado dos EUA, que todo arcabouço que existe dentro o acervo que o Arquivo Nacional… Um presidente da República negar que houve uma ruptura institucional em 64? É coisa de uma pessoa incapaz de raciocinar sobre os valores históricos nacionais e sobre os preceitos constitucionais.
Houve um recuou no seio das Forças Armadas. Não se comemora golpe, tortura, perseguições, cassações, exílio. Cabe uma homenagem aos que lutaram pela democracia. Os subversivos não foram os que lutaram contra a ditadura, subversivos foram os que violaram a Constituição.
Às vezes me pergunto até quando ele vai demonstrar essa incompetência e o Brasil vai segurar essa incompetência. Não é só na posição dele. Nosso ministro das Relações Exteriores: cada dia mostra mais. Ele inclusive é chamado no Itamaraty de Beato Salu. De uma incompetência total na política externa brasileira. Ao ponto de que hoje ele está como um títere, porque acho que o vice-presidente assumiu esse papel. O pai dele foi constituinte em 46 no governo Dornelles no Rio Grande do Sul e, depois do golpe, se tornou assessor x-9 da ditadura.
Lamento muito, cada vez nos dá mais saudades do governo que eles derrubaram. Um governo constitucional. Um ministério que tinha Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Evandro Lins e Silva.Não tenho nenhuma dúvida de que esse posicionamento do presidente Bolsonaro e sua tropa de ministros vai continuar dividindo o Brasil. Isso sim é grave.
As declarações de Bolsonaro geram mais reações fora do país do que internamente. Um exemplo é o Chile. A diferença entre os dois países foi o processo de transição?
Acho que sim. Ainda existe um processo aberto sobre a morte de meu pai, esse processo ainda está no Ministério Público do Rio Grande do Sul.
O Chile, hoje, tem mais de 1200 sítios de memória. Existe uma conscientização do que aconteceu. Não se pode apagar da História de um país o que realmente aconteceu.
Nossa memória, quando foi feita a Anistia, foi uma auto-anistia dos militares. O Brasil não puniu seus torturadores. Nosso presidente, na votação do impeachment, homenageou o maior torturador. Deus acima de todos. Até parece que os deuses dele são Pinochet, Stroessner, Geisel, Videla. Ele não se deu conta que está afastando o Brasil do mundo civilizado, dos direitos humanos, da solidariedade.
Um dos argumentos dos “defensores” do golpe é de que se tratou de um movimento preventivo contra um golpe comunista, de combate à subversão. Teu pai era comunista?
Não, não era comunista. Meu pai era um trabalhista que seguia os preceitos de uma boa relação entre capital e trabalho, pregando o nacional-desenvolvimentismo. Ele sempre respeitou a propriedade privada.
Esse conceito de contra-golpe, para impedir golpe comunista, é criar um fantasma histórico.
A grande reação brasileira – que se assemelha muito ao que vimos em 2016, são os mesmos atores de 64 – impediu o avanço dos direitos sociais. Não existe desenvolvimento em uma conjunção entre capital e trabalho se o único objetivo for o lucro, se tu não cresce junto. Isso Getúlio [Vargas] começou a fazer no Brasil, quando cria a CLT, a Justiça do Trabalho. O desenvolvimento do próprio capital necessita de uma boa relação como trabalho.
Reforma agrária é coisa de comunista? O México fez isso no século 19, os Estados Unidos também. O que pretendia Jango com a reforma agrária? Naquele momento, quando havia 70 milhões de brasileiros, era criar um milhão de novos proprietários rurais com título de propriedade. Onde marxismo defende título de propriedade? Desenvolveria a economia: geraria para a indústria um milhão de novos tratores, implementos agrícolas, geladeiras, criando desenvolvimento interno. Isso é o comunismo que eles enxergam.
O desenvolvimentismo envolvia o controle da remessa de lucros, a reforma educacional que Paulo Freire queria fazer, a reforma tributária. Não se pode tributar consumo, deve-se tributar lucros de grandes empresas, o que hoje não se faz.
Enfim, deve-se criar um modelo de desenvolvimento com distribuição de renda. A medida que você dinamiza o capital, você cria condições para [ampliar] o poder aquisitivo através do salário.
O que acontece hoje? Quer se gerar emprego retirando direitos. “Que adianta ter direitos sem emprego?”. Adianta sim. Não se pode corrigir a economia do Brasil destruindo a Previdência. Você tem que construir a economia para fortalecer a Previdência.
Você fundou o PDT e foi candidato pelo PPL, que agora se funde ao PC do B. Como você se identifica politicamente?
O trabalhismo é uma corrente da qual eu jamais me apartei. Nós vamos propor o nacional-desenvolvimentismo dentro do programa do PC do B. Quais são as prioridades hoje no Brasil? Criar uma frente capaz de derrotar a mercantilização da vida humana, que está trazendo para os trabalhador muitas dificuldades e cada vez mais entregando nosso patrimônio. Anos atrás, durante as privatizações do Fernando Henrique, diziam que elas eram benéficas. Estamos vendo o que está acontecendo na Vale: talvez vai estourar a terceira barragem. É só acidente? É competência do capital privado? Temos que criar uma união das oposições, e essa união se deu nesse momento anti-democrático.
A democracia pressupõe igualdade de condições para o debate de ideias. Os pequenos partidos tiveram sequer acesso ao debate. Aconteceu [a não superação da cláusula] com o PC do B assim como com o PPL. Isso é uma emergência política.
Esse exemplo que o Pátria Livre e o PC do B estão dando ao Brasil, com uma “renúncia” em nome da luta comum pelas propostas progressistas e nacionalistas, é um exemplo que pode florescer muito, em uma nova primavera no Brasil.