Parcialidade de Moro já foi tema de debate durante Caso Banestado. Por Marcelo Augusto de Lemos

Atualizado em 6 de fevereiro de 2021 às 9:33
Sergio Moro NELSON ALMEIDA / AFP

Publicado originalmente no ConJur:

Por Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

O ano era 2010. O Supremo Tribunal Federal ainda não havia julgado a AP nº 470, que lhe conferiu tanto protagonismo, e tampouco existia a operação “lava jato” sediada na (ou, melhor, capitaneada pela) 13ª Vara Federal de Curitiba. O Pretório Excelso naquele ano julgou o Habeas Corpus nº 95.518. O objeto do writ: a parcialidade do então juiz federal Sérgio Fernando Moro. Entre outras coisas, o ex-magistrado teria determinado às autoridades policiais que verificassem se o paciente e os seus advogados teriam ingressado em voos nacionais ou internacionais, inclusive determinando o sigilo do decisum. O fundamento para monitorar os advogados do réu? Absolutamente nenhum. O que ocorreu naquele julgado foi um prenúncio do que veríamos anos depois: a faceta de um juiz parcial e indiferente ao devido processo legal. As mensagens obtidas — e agora colocadas em evidência — no âmbito da operação spoofing não me deixam mentir, até mesmo porque não há mais dúvidas acerca da sua veracidade. São todas, pois, fidedignas e atestadas por perícia técnica.

De há muito, prevalece o entendimento nos tribunais superiores de que o artigo 254 do Código de Processo Penal é taxativo e não admite extensões. Essa é a primeira discussão que precisamos trazer à baila e essa intelecção marcou, sobretudo, o julgamento do Habeas Corpus nº 95.518. Para contextualizar, o writ foi impetrado no âmbito da operação Banestado — cujas ações penais foram também marcadas pela delação premiada do famoso Alberto Youseff — e visava a declarar a suspeição do juiz de primeiro grau e, por via de consequência, todos os atos praticados por este. Sucintamente, a impetração demonstrava que o antigo juiz teria agido com parcialidade, fundamentalmente porque teria: 1) usurpado a competência do MPF na análise das medidas assecuratórias; 2) decretado, em cinco oportunidades distintas, a prisão preventiva do réu, cuja fundamentação — de todas — foi considerada inidônea pelos tribunais superiores; 3) avocado competência de fato ocorrido em outro Estado da federação e negado à defesa acesso ao procedimento e; 4) como referido alhures, investigado, “por tabela”, os procuradores do acusado.

O Supremo Tribunal Federal, por maioria, decidiu que não era caso de suspeição, à luz do raciocínio de que o artigo 254 do Código de Processo Penal é taxativo e os incisos que o acompanham preveem todas as hipóteses de impedimento. O ministro relator pouco fundamentou. Parou no instrumentalismo. O ministro revisor, em que pese tenha compreendido que o caso era digno de repreensão na seara administrativa, adotou o consequencialismo como razão de decidir, uma vez que houve o imediato escrutínio das instâncias superiores, de modo que as decisões do juiz parcial foram reformadas. O único que votou contra foi o ex-ministro Celso de Mello, o qual considerou a postura do então juiz como parcial e, por consequência, considerou como ilícitas todas as provas. O pequeno — porém riquíssimo — voto do ex-ministro merece a nossa transcrição:

Peço vênia para deferir o pedido e, em consequência, invalidar o procedimento penal, pois tenho por gravemente ofendida, no caso em exame, a cláusula constitucional do devido processo legal, especialmente se se tiver em consideração o comportamento judicial relatado na presente impetração. Na realidade, a situação exposta nos autos compromete, segundo penso, o direito de qualquer acusado ao “fair trial”, vale dizer, a um julgamento justo efetuado perante órgão do Poder Judiciário que observe, em sua conduta, relação de equidistância em face dos sujeitos processuais, pois a ideia de imparcialidade compõe a noção mesma inerente à garantia constitucional do due process of law. São essas as razões que me levam a dissentir da corrente majoritária. É o meu voto”.

Esse julgado, à exceção do voto divergente, diz muito sobre o que ocorreu nos anos que sucederam, notadamente no que diz respeito às duas variações do voto vencedor: um rememora o período do positivismo exegético, a contar pelo fato de que se não há — no texto — previsão, quer dizer que não existe e não há possibilidade de ampliação; o outro traz à tona uma espécie de realista-pragmático, para quem o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é. Abre-se, assim, a possibilidade para o julgamento por uma terceira via, como explicou Lenio Streck em recente coluna na ConJur: a conveniência. Ora, se não há critério no processo decisório — isto é, pode-se decidir fundado na letra fria da lei ou pode-se, reconhecendo o problema, fundamentar na consequência —, os juízes podem fazer o que bem entendem em nome de um pretenso combate à criminalidade.

Veja, interpretar a lei corresponde a “considerar a sua historicidade e o sentido interpretativo desenvolvido pela tradição jurídica do sistema em que o texto está inserido”. Desse modo, não faz parte de um processo de interpretação idôneo pressupor que atos que externam parcialidade do magistrado estão fora dos limites do artigo 254 do Código de Processo Penal. O juiz que promove uma cruzada pessoal contra o acusado e seus advogados, decreta prisões preventivas à ilharga da lei e profere decisões arbitrárias pode ser, sim, considerado suspeito, ainda que isso não indique expressamente inimizade capital. Afinal, qual é o objetivo da própria existência do artigo 254? Não é, justamente, assegurar a imparcialidade e a relação de equidistância do juiz criminal? O legislador, portanto, compreendeu que apenas aqueles parcos incisos podem indicar todas as hipóteses de suspeição? Parece-nos que não, pois. Essa sorte de premissa foi, de há muito, superada na teoria do Direito, a partir da doutrina de Hans Kelsen e H.L.A Hart, a despeito de não terem, estes, conseguido lidar com o principal problema teórico do positivismo: a discricionariedade.

O Direito é um sistema de regras e princípios. Por isso, ao interpretar o dispositivo em debate é preciso que este seja lido a partir da Constituição e com amparo no princípio da imparcialidade e do devido processo legal. A exigência da imparcialidade é uma consequência do due process of law. O processo criminal, à base disso, “somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição”. Na existência de vícios na persecução criminal — como, por exemplo, um juiz parcial —, a consequência lógica é, justamente, a anulação de todos os atos praticados pelo magistrado. Doutro lado, o escrutínio das instâncias superiores não afasta a mácula ocasionada e tampouco confere higidez ao processo. O juiz de primeiro grau é aquele que analisa “na ponta” a prova produzida. É ele quem leva a cabo os atos instrutórios. É dele que se espera a primeira grande mostra de imparcialidade, fundamentalmente porque é — através do controle desse — que irá se produzir a prova que conduzirá a defesa nas instâncias superiores.

A discussão travada em 2010 continua candente. Recentemente, o mesmo magistrado foi declarado suspeito noutro caso da mesma operação Banestado. E, em que pese os excessos havidos na referida operação, em vez de ser punido administrativamente, o então magistrado foi premiado e a ele foi imbuída a tarefa de julgar os casos da operação “lava-jato” e, especialmente, as ações penais que tramitavam contra o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. A revelação da conduta parcial do então juiz na operação levada a efeito na primeira década deste século não foi suficiente para afastá-lo da “lava jato”. Afinal, suspeito, de acordo com a intelecção do Supremo Tribunal Federal à época, seria somente aquele que se inserisse nos moldes do artigo 254 do Código de Processo Penal.

Nesta semana, foram divulgadas as mensagens obtidas na operação spoofing. O conteúdo é estarrecedor. Agora, os procuradores da República integrantes da força-tarefa da “lava jato” clamam pelo sigilo das evidências, especialmente porque a prova é ilícita e foi obtida por meios escusos. O projeto de Lei nº 4.850/2016 (“Dez medidas contra a corrupção”), proposto pelos agentes do MPF, sugere a alteração do artigo 157 do Código de Processo Penal, ao escopo de excluir a ilicitude probatória quando obtida de boa-fé, por exemplo, e outras hipóteses. Não seria o caso? O que diremos sobre os áudios de interceptação telefônica ilegal divulgados à imprensa para influenciar processos políticos? Mais: o que falaremos sobre o alarmante ajuste de estratégias entre juiz e acusador? Respeito muito o Ministério Público. É um órgão de fundamental importância em nosso Estado democrático de Direito. No entanto, não existe processo penal à la carte. As mensagens obtidas denotam um escândalo sem precedentes no Poder Judiciário e colocam em xeque toda uma operação que, em última análise, poderia ter sido a gênese de um restabelecimento ético e moral do Brasil que, ao final, se revelou um projeto autoritário e descompromissado com a ordem constitucional.

Ao que constam das notícias, é possível que o Habeas Corpus do ex-presidente — que versa acerca da quebra da imparcialidade do ex-juiz — seja julgado ainda no primeiro semestre de 2021. À luz de tudo o que se viu, não há outra alternativa senão decretar a suspeição. Na linha do que dispuseram os notáveis juristas do Grupo Prerrogativas em recente nota, não há espaço para uma terceira via. Declarando-se o impedimento, os efeitos jurídicos se vinculam à nulidade do processo-crime e não à simples declaração de suspeição sem consequências. Como dissemos antes, o primeiro grande teste de imparcialidade é conferido ao juiz de primeiro grau. Incumbe a ele presidir os atos que, no mais das vezes, conduzem a defesa nas instâncias superiores. Se ele não for imparcial, por certo, o acusado em processo penal não poderá esbater as teses acusatórias, já em primeiro grau de jurisdição, exercendo o mais pleno direito de defesa. Isso é elementar.

De todo modo, o Supremo Tribunal Federal terá, uma vez mais, a oportunidade de julgar os atos que indicam parcialidade do mesmo magistrado. Onze anos depois do julgamento do Habeas Corpus nº 95.518, de novo o Pretório Excelso deverá debater os limites do artigo 254 do Código de Processo Penal. É preciso, de uma vez por todas, enterrar a tese segundo a qual o referido dispositivo possui rol taxativo e não comporta extensão. Afinal de contas, o que é esta tal da inimizade capital? O juiz deve jurar de morte o réu ou vice-versa? O artigo em debate é, pois, garantia da imparcialidade do julgador da causa, de sorte que qualquer evidência concreta que indique quebra desse primado importa, inevitavelmente, na suspeição.