Patrocinado por consultoria, Átila compara capitalismo a “formigueiro” e faz o que critica: anticiência. Por Almir Felitte

Atualizado em 20 de outubro de 2020 às 18:34

POR ALMIR FELITTE

Se você passar a vida estudando formigueiros, você vai se tornar um grande expert em “comportamentos sociais”… de formigas. E só!

Essa semana, Átila Iamarino publicou um vídeo fazendo uma defesa do livre mercado, analisando-o de uma forma “biológica”, comparando a economia e a sociedade humanas a uma colônia de formigas (assista acima).

O vídeo é absurdo e triste por vários motivos.

Triste porque foi patrocinado pela B3 e por uma consultoria financeira, o que parece ter influenciado e distorcido toda a análise feita. Não seria a primeira vez na história que veríamos grandes empresas usando o poder econômico para distorcer a ciência: combustíveis fósseis e chumbo são só dois exemplos históricos de como isso pode acontecer.

Também é triste porque colocou um “divulgador científico” fazendo justamente o contrário daquilo que prega, passando por cima do próprio método científico com comparações sem lógica para validar um discurso que parecia meramente político.

Normal, muitas pessoas das áreas de Exatas e Biológicas, por vezes, têm essa tendência de passar por cima das Ciências Humanas como algo menor ou de mera opinião.

E é absurdo porque, mais uma vez, vemos aquelas comparações sem lógica entre comportamentos humanos e de outros seres vivos, feitos de forma completamente acrítica. É algo tão ilógico que fica até difícil de explicar.

Como dizem alguns cientistas das exatas, “você não está nem errado”.

Comportamentos humanos não podem ser analisados sem a observação dos próprios comportamentos humanos e de seus desdobramentos na realidade que os cerca. Ninguém aqui está dizendo que a Biologia não pode cumprir o seu papel analisando o ser humano enquanto o animal que de fato é, inclusive em suas atitudes comportamentais.

O que se está apontando é a problemática de comparar de forma simplória traços sociais humanos complexos, cheios de variáveis igualmente complexas, com comportamentos químicos e instintivos simples de outras espécies.

Não se fazem analogias simplistas entre o comportamento de um rato ou de uma formiga e o de seres humanos para tirar conclusões sobre a nossa sociedade sem que se façam várias ressalvas a respeito de conceitos tipicamente humanos, somente observados em nossas comunidades.

É anticientífico, mesmo que sirva para validar o que você concorda.

Lembro, por exemplo, quando circulou um estudo sobre a “Ratolândia”, uma cidade experimental de ratos que analisaria o uso abusivo de drogas. A conclusão tirada a partir estudo até era legal, de que a convivência social e as estruturas sociais podem levar um indivíduo a usar mais ou menos drogas.

Concordo com isso, mas não por causa da “Ratolândia”, e sim pela própria observação da nossa realidade humana. Qualquer analogia social mais complexa retirada unicamente da “Ratolândia” seria anticientífica. Nossa sociedade é infinitamente mais complexa do que uma gaiola de ratos previamente preparada para um estudo.

Átila Iamarino e seu patrocinador, a B3

Do mesmo modo, deveria ser meio óbvio dizer que a eficiência biológica de um formigueiro não tem nenhuma relação análoga à economia de uma sociedade humana. Como comparar um processo dirigido por fenômenos químicos com outro sistema complexo influenciado por conceitos exclusivamente humanos como, por exemplo, a obsolescência programada?

Ou com a própria ideia de direitos e opressões? Aliás, como comparar os próprios conceitos de eficiência, que podem ter sentidos tão diversos? Não faz o menor sentido.

O uso de drogas não é exclusivo de seres humanos. Políticas públicas de lazer e o próprio conceito de criminalidade são. Eficiência certamente não é um conceito aplicável somente a nós. Eficiência econômica sim.

Comparações sem lógica para validar um pensamento claramente pré-concebido não é ciência. A mistura acrítica e anticientífica entre biológicas e humanas, aliás, é perigosa. Vejam, por exemplo, as teorias infundadas de Lombroso e sua relação com o supremacismo branco.

É preciso reconhecer a “naturalização” de conceitos socialmente construídos por humanos, como o capitalismo e o livre mercado, com todas as suas contradições, como um problema grave.

Um verdadeiro mecanismo de propaganda que somente poderia ser digno de um vídeo patrocinado por instituições financeiras, tentando pintar como natural e imutável uma estrutura extremamente problemática e que é, na verdade, socialmente mutável.

As Ciências Humanas merecem o devido respeito e incentivo. É essencial reconhecer que “nazismo é de esquerda” e “a Terra é plana” são frutos de um mesmo problema.

Não adianta reclamar que tem gente que não quer tomar vacina se, na hora de defender seus interesses, as Ciências Sociais são deixadas de lado.