Num momento crucial para o país, quando coturnos voltam a ser os calçados que falam por seus donos, a mídia tem – ou deveria ter – a responsabilidade de atuar pela democracia de modo contundente. Nem que seja por puro interesse, pois sem democracia a mídia não é nada, não serve para nada.
Cresce aos olhos, portanto, que um artigo publicado na Folha de S.Paulo (“Juntos, Haddad e Manuela trazem esperança de retomada democrática”) que enaltece o regime, venha acompanhado de um post scriptum em forma de ‘alerta’:
“Esclarecimento: trata-se de um texto de opinião que foi publicado sem indicação de autoria. Pedimos desculpas pelo mal-entendido”.
Desculpas? Mal entendido? As desculpas são pelo lapso de não haver citação ao autor? Mas e quanto a ‘mal entendido’? O jornal não concorda com a opinião e adotou um modo enviesado para não se comprometer?
O texto era de autoria de Luis Rheingantz, Pérola Mathias e Ricardo Teperman, e seu título auto-explicativo: a oficialização de uma chapa cuja formação original tem a preferência de intenção de voto para a maioria do povo, mas que está mantida atrás das grades.
Curioso é que, no dia seguinte à publicação do artigo em defesa de Haddad, Leandro Narloch publica uma cretinice na qual afirma ver “graça em Bolsonaro” e nenhum sinal amarelo consta no rodapé.
Intitulado “Não deveria, mas acho graça em Bolsonaro”, Narloch, que sequer tem originalidade para criar termos pejorativos no intuito de subestimar seus opositores e dá copy/paste no ‘inteligentinho’ de Luiz Felipe Pondé, gasta papel e tinta para confirmar-nos que tudo o que vem depois do ‘mas’ é o que importa.
Assim, a cada parágrafo Narloch cita uma abominável característica do militar candidato para, em seguida, engatar um ‘mas’. O jornalista declara ter amigos gays, “mas solto uma gargalhada quando Bolsonaro diz que vizinho gay desvaloriza o imóvel”.
Para o colunista da Folha, Bolsonaro é estúpido e preconceituoso, “mas é irreverente que só”. O capitão reformado, no fundo, “se esforça para parecer mais irreverente e maldoso do que realmente é”.
Leandro Narloch assimila discurso do próprio Bolsonaro, para quem tudo “é brincadeira” e endossa a decisão do mininstro Alexandre de Moraes que absolveu o candidato do PSL da acusação de prática de racismo. Ambos referem-se como grosseria, equívocos, termos mal colocados, “mas” não racismo, nem injúria, nem nada. Apenas chatices do politicamente correto.
Então é isso? Num texto favorável a Fernando Haddad o jornal corre para explicar que aquilo nada tem a ver com a posição editorial, ao passo que um artigo que busca tornar Bolsonaro um ‘cara normal’, está tudo bem?
Antes que o leitor considere exagerada a crítica, precisa ter ciência que o editorial da Folha de hoje não deixa dúvidas de seu posicionamento: “Dado que o candidato (Haddad) tem chances reais de vitória, a tentativa de associá-lo à memória dos anos Lula, somada a uma discussão programática rasa, eleva os riscos de novo estelionato eleitoral”.
Pelo visto, para parte da mídia que ‘soube sobreviver’ durante a ditadura, militares quererem tomar o poder com o aval do voto não é estelionato eleitoral.
Faz sentido suavizar um monstro truculento que representa ‘os profissionais da violência’? Tem cabimento escrever algo meio que querendo justificar as decisões de um Judiciário que a cada dia goza de menos credibilidade e respeitabilidade?
Enquanto Bolsonaro pode chamar pessoas de “vadias, vagabundas, quilombolas que não servem nem para fins de reprodução” e desmiolados veem graça nisso ao invés de considerar o que de fato essas ofensas são – crimes – gente como a modelo negra Bárbara Querino está condenada injustamente a 5 anos e 4 meses de prisão por um roubo de carro cometido em uma data em que ela estava em outra cidade (a única ‘evidência’ da autoria é seu cabelo crespo). Para ela e demais jovens em situação idêntica, não há ‘mal entendido’ a ser relevado.
Fico curioso para saber se o general Mourão considerará uma ‘irreverência’ a fala de Ciro Gomes que ontem, em sabatina do jornal O Globo, chamou-o de “jumento de carga” e se Narloch tentaria convencê-lo disso. Generais não costumam ver graça em nada. Eles prendem e arrebentam.