Um novo trecho de Minha Tribo — o jornalismo e os jornalistas
Manuais de redação rígidos são complicados. Podem inibir a criantividade dos jornalistas. Se o repórter tiver que consultar o manual antes de escrever cada texto, isso é um problema para ele e para o leitor.
Mas nenhum manual é ainda mais complicado. Os redatores podem se perder e, com eles, os leitores.
Um manual simples, direto e flexível é a melhor solução. Traz disciplina sem criar gesso. Como um bom amigo, ele está ali, discreto, à disposição do jornalista. Só quem escreve sabe quantas pequenas dúvidas podem assaltar você na hora de fazer um texto.
Outra virtude de um manual — que não seja tirânico — é criar cultura editorial.
Foi pensando nisso tudo que, no começo dos anos 2000, decidi fazer um “Pequeno Manual Básico do Jornalismo”. Eu era superintendente de uma unidade de negócios da Abril. A razão mais premente é que, naquele momento, estava em curso na unidade um vigoroso processo de expansão de marca das revistas. Com base em experiências internacionais, eu tinha estabelecido que cada revista deveria crescer 25% no faturamento com a expansão da marca — edições especiais, dvds, eventos e tudo o mais que tivesse pertinência e qualidade.
Isso fez com que as redações — com grande destaque para a Superinteressante — utilizassem muitos frilancers. Poderíamos perder o controle sobre normas práticas de redação que tínhamos em nosso dia a dia, nascidas de conversas — um item insubstituível no quesito cultura editorial.
Falei sobre isso com um dos maiores redatores que conheci em minha carreira, José Roberto Guzzo. Propus a ele fazermos, juntos, um pequeno manual. Como eu, Guzzo é um jornalista essencialmente de ação, avesso a pomposidades teóricas. Desde que deixamos de trabalhar juntos, procurei sempre ter Guzzo por perto. Quando deixei a Exame para cuidar de outros títulos da Abril, pedi a Guzzo que lesse e comentasse as primeiras edições. Ele fez isso por escrito. Passei-as aos editores. Foi com surpresa nostálgica que, anos depois, Adriano Silva, a quem coube reinventar a Superinteressante, me mostrou os comentários de Guzzo à primeira edição da nova administração. Ele guardara os papéis nos quais Guzzo os imprimira. Um primor. Com clareza e lógica, ele apontava as forças e as fraquezas do que lera.
O manual não era nossa primeira parceria. Em nossos dias de Exame, ele diretor geral, eu de redação, escrevemos juntos uma análise sobre a imprensa brasileira, chamado “Má Notícia é Boa Notícia”. Nos finais de tarde, na redação da Exame, conversávamos sobre o que considerávamos a neurastenia pessimista da mídia. Falávamos que tínhamos que escrever um artigo. Um certo dia, Guzzo me chamou e me entregou uns papéis. Eram a sua parte no texto. Ele esperava que eu fizesse a minha. Fiz. Uma se emendou na outra, e não conheci ninguém que visse ali duas partes e não uma peça só.
Desta vez, no manual, fui eu que tomei a dianteira. Passei a Guzzo os sete primeiros tópicos. Ele leu e acrescentou mais três. Neles aparece Guzzo como o grande jornalista que é. Reli agora o título de cada tópico de Guzzo. Sozinhos, eles têm um considerável valor: seja lógico, seja claro e seja consciente.
Havia uma provocação em meus itens. Alguns jornalistas mais velhos — não muitos — tiveram dificuldade em entender a mensagem. Dentro da lógica de respeito às melhores práticas, eu exortava as pessoas a ler, pedagogicamente, todas as revistas que fossem referência mundial para aquela para o qual trabalhavam. “Isso encurta o caminho do aprendizado”, escrevi. O título que dei para este tópico era “Seja Plagiador”. No contexto, estava claro que era um “plágio” de boas práticas: faça fotos como as publicações que fazem as melhores fotos etc etc.
Unidas as partes de Guzzo e as minhas, apresentamos o pequeno manual no auditório da Editora Abril. Estavam presentes jornalistas e colaboradores. Convidei também o pessoal de outras áreas — publicidade, administração, marketing — porque isso poderia ajudá-los a entender melhor as revistas. O comparecimento foi maciço. Pena que não haja, que eu saiba, registro fotográfico. Ver Guzzo falar sobre texto era uma tremenda atração.
Revi, depois de muito tempo, o conjunto das recomendações. Das que fiz, minha predileta é a que prega versatilidade aos jornalistas. O modelo de jornalista que sempre persegui é aquele que é capaz de apurar, redigir e fechar um texto. Eram aqueles que eu, usando o ótimo método de Jack Welsh para distinguir as pessoas de uma equipe, classificava como “A” dentro de uma escala de “A” a “C”. É com “As” que você faz ou refaz uma grande revista. “Bs” com potencial de virar “As” merecem investimento em treinamento. “Cs” — acomodados, preguiçosos, sem ânimo para vencer limites — não levam a lugar nenhum. Anexo, aqui, o texto completo do manual.
PEQUENO MANUAL BÁSICO DO JORNALISMO
1 – Seja Simples
Palavras curtas são melhores que palavras longas.
Frases curtas são melhores que frases longas.
Verbos simples são melhores que verbos pomposos.
“Paulo diz” ou “Paulo afirma” é melhor que
“Paulo explica” ou “Paulo ensina”.
2- Seja Desconfiado
As pessoas mentem. Cheque informações
relevantes ou se proteja com uma técnica adequada de redação.
“Paulo diz que caminha uma hora por dia”
é melhor que
“Paulo caminha uma hora por dia”.
(Fiz um post sobre este tópico, especificamente. A origem dessa preocupação foi prática. Steven Ross, o executivo que comandou a fusão entre a Time e a Warner, dizia que tinha jogado futebol americano profissionalmente num time pequeno do interior americano.
Essa informação — ótima para conversas de bar — saía automaticamente em quase todo perfil de Ross. Até o dia em que um repórter mais desconfiado foi à sede do time e pesquisou a documentação.
Nada.
Era mentira.
Para Ross, foi um mau momento numa carreira vitoriosa. Para mim, uma revelação dos cuidados que temos que tomar.
Eu trabalhava na Exame, então. Desde que apertamos o cerco, descrobrimos alguns casos de executivos e empresários que diziam ter feito MBA em escolas como a Harvard sem ter colocado os pés lá.
Minha recomendação era pelo bom senso. Casos mais importantes, checar cuidadosamente. A Exame passou a procurar Harvard, por exemplo, para conferir MBAs de quem afirmava ter feito. Casos mais simples, que não compensem o investimento em tempo, poderiam ser resolvidos com a técnica adequada de redação.)
3- Seja Original
Responda rápido: existe início de matéria mais desinspirado que “responda rápido”?
Fuja dos clichês e dos lugares comuns.
“Brasileiro” é melhor que “brazuca”.
A busca da originalidade vale tanto para o texto como a matéria em si. Qualquer matéria sobre
uma nova tendência é melhor que uma matéria sobre a morosidade da justiça.
4- Seja Plagiador
Leia sistematicamente, pedagogicamente as publicações internacionais que sejam referência para o tipo de revista em que você trabalha.
Isso encurta o caminho.
Preste atenção em tudo: das chamadas de capa às legendas.
5- Seja Versátil
O jornalista ideal é o que é capaz de
apurar, escrever e editar.
Ele vale por três. E pode ganhar por três.
6- Seja Engraçado
Senso de humor é fundamental,
qualquer que seja a natureza da revista.
Instruir e divertir: este é o nome do jogo.
7-Seja Humano
Pessoas estão por trás de tudo sobre
que escrevemos, de ciência e TI a hotéis
e times de futebol. A presença de gente
nas matérias só as melhora.
8- Seja Claro
Só termine de apurar quando você entender
de verdade o que apurou.
Só comece a escrever quando tiver certeza
de entender o que estará escrevendo.
9- Seja Consciente
Você precisa saber exatamente o que quer escrever.
10- Seja Lógico
Comece pelo começo; vá direto até o fim; aí pare.
(Lewis Carroll, em “Alice”)