Publicado originalmente no Brasil de Fato
Boletins médicos sobre os corpos de parte dos 28 mortos na operação Exceptis no Jacarezinho, a mais letal da história do Rio de Janeiro, mostram que as vítimas foram atingidas por disparos de armas de fogo no rosto, abdômen e nas costas. As descrições, de acordo com informações do jornal Extra, constam em 25 Boletins de Atendimento Médicos (BAMs). Os documentos foram produzidos pelos hospitais municipais Evandro Freire e Souza Aguiar, duas das três unidades para as quais foram levados os baleados na operação.
Os registros mostram que no Hospital Souza Aguiar, que recebeu a maioria das vítimas, 20 homens, em pelo menos três documentos há descrição de corpos eviscerados. Isto é, que chegaram à unidade com as vísceras para fora. Os relatórios do Hospital Evandro Freire ainda apontam que cinco vítimas tiveram as “faces dilaceradas”. As primeiras análises vêm colocando em xeque a narrativa de confronto levantada pela Polícia Civil desde o dia 6 de maio, quando foi realizada a operação, classificada de “chacina” por entidades de direitos humanos e segurança pública.
Os boletins também reforçam as denúncias prestadas por moradores do Jacarezinho já nas primeiras horas da operação, que falam em execução mesmo após a rendição. Ainda segundo os relatórios médicos das duas unidades, todos os homens já chegaram sem vida. Apesar de estarem mortos, todos foram levados pela Polícia Civil ao setor de politrauma dos hospitais.
Contrariando determinações do Supremo Tribunal Federal (STF) que, não só limitou as operações policiais a casos de “excepcionalidade”, como também impôs formas de atuação. Entre elas, a que determina aos agentes “evitar a remoção indevida de cadáveres sob o pretexto de suposta prestação de socorro”.
Perfurações atingiram partes vitais
Para a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) e a Defensoria Pública do Rio, há indícios de “desfazimento de cenas”. A diretora de programas da Anistia Internacional no Brasil, Alexandra Montgomery, comentou as primeiras análises das mortes, avaliando que o caso expõe como a polícia, não apenas no Rio, mas no Brasil de forma geral, ao atuar na lógica do confronto e do “inimigo interno”, age de forma “muito agressiva e excessiva”. “E não segue os parâmetros sobre o uso da força de maneira nenhuma nos territórios de favelas e periferias”, afirmou.
A organização disse aguardar os laudos da necropsia, que ainda não foram concluídos, para confirmar se houve as execuções sumárias ou extrajudiciais. Mas a diretora pondera que os boletins médicos “já demonstram, pelo que ficou evidenciado e foi noticiado, características de perfurações que atingiram partes vitais dos corpos”.
Alexandra destacou que a Anistia vem cobrando uma investigação independente sobre o ocorrido em Jacarezinho e também transparência por parte da Polícia Civil sobre os protocolos de atuação. A executiva explica que essa informação é importante para que a população civil possa “compreender onde termina a ação policial e começa o abuso”.
De acordo com ela, a ONG, desde o dia da chacina, vem acompanhando os relatos de “terror, desespero e tristeza da comunidade”, como descreve, que denunciaram a “demora da chegada dos corpos ao IML (Instituto Médico legal), as dificuldades de identificação e as cenas horríveis de sangue e desfazimento de cenas dos crimes. Muito sofrimento que a comunidade tem passado”, resume.
“Nem em uma guerra é assim”
Moradores de Jacarezinho denunciam que na rua Areal, por exemplo, onde mais vítimas foram registradas em um único boletim de ocorrência, as pessoas foram executadas mesmo após estarem rendidas. Oito homens morreram no local e os policiais ainda não explicaram como. Para Alexandra, comprovada ou não as denúncias, a atuação da polícia evidencia que a “guerra às drogas é uma falácia”. “A polícia entra em um território, 28 corpos saem dele, inclusive o de um policial, e o tráfico (de drogas) segue existindo. Não existe a possiblidade de ganhar uma guerra às drogas”.
A executiva ainda ressaltou que o argumento mascara uma “política de extermínio”. “E de toda forma, quando falamos de guerra, o oponente, quando tenta se render, tem que ser dada a ele a oportunidade de se render. O que se vê no Brasil foge completamente inclusive das regras que se aplicariam a uma guerra, se ela existisse. Então não há que se falar em guerra às drogas, o que existe é política de extermínio. Uma política que elimina pessoas com a justificativa de levar segurança”, contesta.
A Polícia Civil, contudo, ainda chama todos as vítimas de “criminosos” e alega que “o fato de chegarem mortos à unidade hospitalar não quer dizer que não foram resgatados com vida”. Segundo a corporação, “as mortes poderiam ter acontecido no caminho ou na entrada do hospital”. Os agentes dizem ainda que os fatos relacionados à retirada dos corpos das cenas “serão esclarecidos durante investigação policial que está em andamento e sendo acompanhada pelo Ministério Público”.