Publicado originalmente no ConJur
Por Rafa Santos
A notícia de que o ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, havia pedido abertura de inquérito para investigar um grupo de músicos punks do Pará ganhou espaço no debate público.
A informação da abertura de inquérito contra os organizadores do “Facada Fest”, em Marabá, foi publicada pelo jornal Folha de S.Paulo na última quinta-feira (27/2). Segundo o jornal, Moro “requisitou a abertura de inquérito” contra quatro artistas.
Mas, no mesmo dia, o ministro tentou desmentir a informação, por meio do seu perfil oficial no Twitter. “A iniciativa do inquérito não foi minha, como diz a Folha de SPaulo, mas poderia ter sido.Publicar cartazes ou anúncios com o PR ou qualquer cidadão empalado ou esfaqueado não pode ser considerado liberdade de expressão.É apologia a crime, além de ofensivo (sic)”, escreveu o ministro.
Os organizadores do evento, no entanto, divulgaram documento por meio do qual se pediu a abertura do inquérito, em que consta a assinatura do ministro.
Em resposta, o Ministério da Justiça divulgou na íntegra toda tramitação do caso. A ConJur avaliou o documento e consultou especialistas para verificar quem, ao fim e ao cabo, solicitou a abertura do inquérito.
E também para verificar se as manifestações dos organizadores do festival de fato configurariam crime e justificariam abertura de inquérito.
Passo a passo
O despacho pedindo providências sobre o festival punk foi enviado ao Ministério Público Federal pelo Instituto Conservador de São Paulo. A entidade foi formada a partir do Movimento Direita São Paulo e tem como presidente Edson Pires Salomão; como vice, Douglas Garcia Bispo do Santos.
Douglas Garcia (PSL) é deputado estadual por São Paulo e ganhou fama nas redes sociais por ser um dos idealizadores do bloco de Carnaval Porão do Dops, que tinha como símbolo a imagem do torturador da ditadura Carlos Alberto Brilhante Ustra. O bloco foi impedido de desfilar no Carnaval paulista pela Justiça.
O documento tem 62 páginas e aponta suposto crime contra a honra do presidente, apologia ao crime. Também reúne um verdadeiro dossiê com postagens de protesto no Facebook contra o atual governo.
As mensagens foram elaboradas por Eloi Martins, Tainah Chaves, Jayme Catarro e Rafael Garganta — os quatro artistas apontados como organizadores do festival.
O despacho ainda passou pela Procuradoria Regional da República antes de ser enviado ao ministro da Justiça, que, apesar de não ter tido a iniciativa, assinou o requerimento de abertura de inquérito para Polícia Federal.
Requisição de Moro
Para o professor adjunto de Direito Penal da Universidade Federal do Paraná, Francisco Monteiro Rocha Júnior, o inquérito só poderia ser aberto por ordem do ministro da Justiça, ou seja, Sergio Moro.
“Cabe a nota de que crimes contra a honra do presidente da República só são investigados e processados, por força do parágrafo único do artigo 145 do Código Penal, ‘mediante requisição do Ministro da Justiça’. Ou seja, houve uma deliberação explícita por parte do governo no sentido de que eventuais crimes deveriam ser investigados. Não se tratou de um ‘mero despacho de seguimento do procedimento’, ao contrário das manifestações do ministro quando veio a público explicar o que fez. Foi uma requisição explícita”, diz.
Na requisição assinada por Moro em 12 de dezembro de 2019, o ministro pede ao Ministério Público o prosseguimento da ação penal contra os artistas.
“De fato, os elementos coligidos aos autos indicam estarem presentes as condições que fundamentam a expedição de requisição para o prosseguimento da persecução penal visando apurar a prática da conduta criminosa capitulada nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, contra o Sr. Presidente da República”, diz o documento.
E prossegue: “Por estas razões, e à vista dos demais elementos que constam dos autos, requisito, com fundamento no artigo 145, parágrafo único, do Código Penal, o prosseguimento, por parte do Ministério Público, de persecução penal voltada à apuração dos fatos apontados na Notícia de Fato nº 1.23.000.001909/2019-43, que indicam, em tese, a prática de crime contra a honra do Sr. Presidente da República”. Os grifos são da ConJur.
Objeto do inquérito
Para Lenio Streck, jurista e colunista da ConJur , o inquérito sequer deveria ser aberto. “Penso que o problema é a estigmatização do punk. Como no passado do samba, do rock, do hip-hop etc. Há que se cuidar e separar bem as coisas. Não misturar ovos com caixa de ovos. Sob pretexto de punir uma eventual ofensa à uma autoridade, não se deve usar o direito para criminalizar a arte, estigmatizando a manifestação”, diz.
Rocha Júnior também critica os pressupostos que ensejaram a abertura do inquérito. “O que ocorre é que, nem em tese se pode cogitar de crime. Em primeiro lugar, porque a apologia a crime (artigo 287 do CP) nem em tese ocorreu. Não se verifica em qualquer imagem ou texto alguém elogiando a facada ou a suposta tentativa de homicídio, como imagina o Instituto que assina a notícia de fato. Em segundo lugar, imputa-se aos organizadores um abstrato crime contra a honra (sem definir se é injúria, calúnia ou difamação). Contudo, há que se ter noção de que críticas contundentes, e principalmente as satíricas — como parece ser o caso — são usuais e inclusive esperadas em um regime democrático”, explica.
Liberdade de expressão
Para o doutor em Direito pela USP Marco Antonio dos Anjos, os cartazes usados para divulgação do “Facada Fest” não podem ser enquadrados como crimes. “Os desenhos diretamente se referem ao presidente da República e o fazem de maneira agressiva. O que se deve indagar é: o objetivo do autor foi o de ofender a imagem da pessoa retratada e incentivar a violência ou, por outro lado, tecer críticas à atuação do Presidente? Esses desenhos são manifestação do pensamento e do direito de crítica que, quando se dirigem a ocupantes de cargos públicos, podem ser exteriorizados de forma mais veemente. Atende ao interesse público existir maior liberdade de crítica quando ela se refere a pessoa cuja conduta naturalmente se submete ao crivo mais forte das pessoas”, explica.
O advogado Ricardo Cerqueira Leite lembra que, em tese, todos podem falar o que desejam. “É vedado o anonimato, mas devem ser responsáveis por aquilo que produzem, seja no aspecto cível, seja no aspecto penal. Nesse caso em específico, eu acredito que estamos mais próximo de uma indenização do que de uma figura penal”, comenta.
Professor de Direito da UnB e sócio de Marcelo Leal Advogados, Benedito Cerezzo Pereira Filho também acredita que não houve nenhum cometimento de crime na divulgação dos cartazes do festival punk. “Isso deve ser visto como uma crítica. Uma forma de manifestação do pensamento sobre determinado assunto. Não existe motivo para uso do Direito Penal. Por sinal, o Direito Penal deve ser resguardado apenas para questões mais agudas”, explica.
Para Pereira Filho, o governo deveria dar o exemplo e ter mais tolerância com qualquer tipo de arte. “Eu não posso sufocar a manifestação de pensamento baseado no singelo argumento de incitação a qualquer tipo de deslize ou crime”, finaliza.