Perseguição ao reitor da UFSC continuou além da morte com vazamentos de novas acusações. Por Renan Antunes

Atualizado em 22 de fevereiro de 2021 às 21:49
Cancellier

POR RENAN ANTUNES DE OLIVEIRA, de Florianópolis (SC)

Não adiantou nem o suicídio dele.

Os procuradores e policiais da Operação Ouvidos Moucos estão usando os métodos peculiares da Lava Jato para continuar perseguindo o reitor Luís Carlos Cancellier até depois de morto.

Eles estão passando à mídia, de forma anônima, vazamentos seletivos com novas acusações contra o falecido.

O que está em jogo não é mais punir os autores do suposto desvio de verbas na UFSC, mas salvar a reputação dos acusadores, tanto agentes quanto delatores.

Trava-se esta batalha pela imagem porque enquanto a morte do reitor é percebida como resultado de deduragem e abusos das autoridades, Cancellier agora é visto como mártir de um sistema legal atrofiado.

O pessoal da Justiça, Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF) ficou calado na semana posterior ao suicídio, esperando a hora certa de apresentar sua segunda versão de acusação, mais pesada.

Segundo a nova investida das autoridades, o reitor não teria mais apenas tentado impedir as investigações internas da UFSC (coisa que, em vida, sempre negou), mas seria ele mesmo beneficiário dos desvios (óbvio que não pode se defender destas porque já estava enterrado).

Como da primeira acusação, nenhum documento foi apresentado – a campanha de desmoralização se dá soprando a nova versão para jornalistas, com a condição de anonimato. A entrega das provas “fica para uma etapa posterior do processo”.

Como o Código Penal não permite levar ao banco dos réus pessoas mortas, a segunda versão está rolando na imprensa e logo vai para as redes sociais.

Ela não foi dada diretamente por delegados e procuradores federais, como da primeira vez, mas através da Rede de Controle da Gestão Pública, entidade de âmbito estadual que se prestou ao serviço.

Registro obrigatório: menos conhecida dos catarinenses do que o boteco do Deca na praia Mole, a Rede tem como sua primeira ação notável lançar lama no reitor morto.

Na prática, a Rede ofereceu anonimato às autoridades federais envolvidas na operação. Ela usa os mesmos delatores do caso original que levou o reitor à prisão e ao afastamento do cargo, em 14 de setembro.

Relembrando: Cancellier se matou dia 2, depois de 18 dias afastado do UFSC a pedido da PF.

O suicídio dele (saltando do último andar de um shopping) foi entendido como um gesto desesperado, de pura impotência contra a megaexposição na mídia e as humilhações sofridas em 36 horas numa masmorra da democracia.

Na versão original da PF, Cancellier foi acusado de obstruir investigação interna da UFSC sobre supostos desvios no programa de Educação à Distância (EAD).

O martírio do reitor no shopping causa uma onda de protestos que começou já no velório. Amigos, familiares e o bilhete suicida dele deram a dimensão da perseguição além da medida: ele passou até por revista anal.

O suicídio sacudiu o Congresso, dando combustível para a Lei de Abuso de Autoridade em discussão pelos parlamentares. O senador Roberto Requião quer que a nova lei leve o nome do reitor.

O ministro do STF Gilmar Mendes  sugeriu que se investigue os  investigadores da Ouvidos Moucos.

Na UFSC, ex-colegas do reitor preparam uma ação para exigir que as autoridades envolvidas no caso sejam removidas de Santa Catarina. Eles também querem rebatizar o campus com o nome dele.

O bilhete de suicida do reitor

Entretanto, a reação ao suicídio do reitor não intimidou os acusadores. A PF anunciou que a Ouvidos Moucos vai continuar – o que pode valer para os demais professores envolvidos, mas não para Cancellier.

Para salvar a cara das críticas, as autoridades usaram a desconhecida Rede de Controle.

Sem sede e sem CNPJ, no sábado a Rede divulgou uma nota sem noção, na qual responsabiliza o morto pela “espetacularização” do suicídio.

A face visível dela é a do promotor do Tribunal de Contas do Estado Diogo Ringenberg. Mesmo alheio ao caso federal, ele se intitula representante dos colegas, na qualidade de “coordenador da gestão 2016-2018”.

Ringenberg disse que teve encontro com todos os envolvidos e acesso ao processo (antes que, na semana passada, a Justiça decretasse sigilo na parte referente ao morto), de quem recebeu  os novos dados.

“A Justiça concedeu prisão e afastamento porque tinha 12 evidências. Não duas, mas 12 evidências, conforme será demonstrado pela PF”, disse Ringenberg ao DCM.

A PF também se ampara na ampliação do testemunho da professora Taísa Dias, delatora de primeira hora. Ela retornou à universidade nesta segunda-feira, depois de um afastamento forçado pelo clamor do campus.

Taísa disse que “no dia em que anunciaram o suicídio eu tive que fugir porque os ânimos estavam exacerbados”.

Os advogados, amigos e familiares de Cau tentaram desqualificar o depoimento dela: no velório e enterro os comentários a apresentavam como sendo “uma doida varrida”.

A professora Taísa, 45 anos, casada, dois filhos adolescentes, não aparenta desequilíbrio algum.

Ontem, deu entrevista ao DCM, serena. Contou que assumiu a coordenação do programa EAD em 2016 e logo descobriu que alguns professores estariam fazendo maracutaia com verba federal – os nomes deles estão no processo.

“O pessoal tentou me subornar”, falou, com firmeza. “Como eu não aceitei, eles passaram a me ameaçar. Disseram que poriam uma bomba no meu carro, tive que vir trabalhar de Uber. E precisei mandar meus filhos para um local seguro”, queixou-se.

Ela contou que quando soube do suposto desvio procurou o reitor para pedir providências — então ele teria sugerido que ela desistisse da investigação própria (porque o caso já estava nas mãos da corregedoria interna, além da Controladoria Geral da União  e do Tribunal da Contas da União).

A resposta dele foi entendida como crime pela PF.

Taísa disse que “eu não tinha nada pessoal contra o reitor, era minha primeira vez com ele. Notei que ele não era a pessoa cordial e conciliadora que todos diziam ser, mas um homem frio e irônico” — tarde demais para confrontar a versão dela com a do reitor.

A professora voltou às aulas e diz que não se arrepende das denúncias que fez: “Eu acho que o suicídio dele foi para escapar das acusações, o reitor vai ser desmascarado pela PF ao final das investigações” — afirmação que consta do rol de 12 acusações citadas pelo promotor da Rede.

Essa nova narrativa apareceu nos jornais da afiliada da Globo na segunda, 9. Na TV, no mesmo dia, o papo do promotor Ringenberg foi reproduzido pelo comentarista Renato Igor no Bom Dia Santa Catarina, destacando a atividade da PF.

Renato Igor, comentarista do Bom Dia SC: “Tudo aconteceu dentro da legalidade”