Publicado no blog do Marcelo Auler
Foi em 1994, mas especificamente, no final do mês de novembro. O Rio experimentou, mais uma vez, a intervenção militar para combater a violência urbana, que de organizada nada tem. Já aconteceram em 1992, quando forças militares assumiram o comando a pretexto da Eco-92.
Repete-se agora o gesto de desespero. Mas, não por conta de alguma situação aflitiva na segurança em si. Nada aconteceu de diferente que justifique a explicação simplista de que ocorreu uma “metástase” como disse, na tarde desta sexta-feira (16/02), o presidente golpista, Michel Temer. A não ser que ele faça relação com o desfile da Paraíso do Tuiuti, no domingo de carnaval.
Na realidade, de crime organizado, no Rio, o tráfico não tem nada. Digo isso, desde quando era repórter de O Dia (1994/200), ou mesmo no meu tempo de Estadão (2006/2011), período em que escrevi, a pedido do amigo Pedro Paulo Negrini, o capítulo “Organizações Criminosas no Rio de Janeiro“, no livro Enjaulados (Editora Gryphus, 2008), em coautoria com Negrini e Renato Lombardi. Fossem organizados os traficantes que armados dominam os morros, não haveria força policial a contê-los.
Na verdade, crime organizado no Estado do Rio se conheceu um, muito bem articulado: a quadrilha do PMDB (ou, hoje, rebatizado de MDB) comandada por Jorge Picciani, Sérgio Cabral, Eduardo Cunha e tendo como apoiadores (colaboradores?) Moreira Franco e o próprio Temer. O prejuízo que eles causaram nos últimos anos foi bem maior do que o sacrifício que o tráfico impõe às famílias cariocas, em especial, e fluminenses, de um modo geral. Basta ver que por falta de apoio financeiro e investimentos sociais nas áreas que, antes dominada, tinham sido retomadas, o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) ruiu. Evaporou-se.
Convocar as Forças Armadas para assumir a segurança do Rio não é a solução. Já se fez isso antes. Muitas vezes. Sem jamais se resolver o problema. Criaram-se outros. Elas ajudaram, sim, em projetos integrados. Quando da retomada de áreas antes dominadas, por exemplo. As mesmas áreas que os governos do partido de Temer não souberam manter. Por ganância.
Para o aumento da violência no Estado – como de resto no país – também contribuíram as medidas do próprio governo Temer. Na medida em que ele congelou investimentos sociais, provocou o aumento da massa de desempregados e impôs uma mudança da legislação trabalhista que tem tornado mais precários os empregos.
Entregar ao Exército (ou Forças Armadas) a segurança de uma cidade, como já ocorreu, não é solução e gera temores. Mais ainda todo um Estado. Já nem se tratada de superstição, suspeita ou pré-conceito. Mas puro conhecimento.
Os exemplos, se saíram das memórias das pessoas, podem ser vistos nos arquivos dos jornais. Os mesmos que, muito provavelmente, neste sábado podem estar estampando loas à decisão,. Fingem não ver que não passa de uma jogada para tentar desviar o foco negativo de um governo impopular. Por este ângulo – desvio do foco – entende-se o efeito Tuiuti.
Graças à onda de demissões de bons profissionais, trocados por novatos com salários menores e menos experiência, a chamada grande mídia hoje não tem memória. Poucos relembrarão os momentos dolorosos que a população carente carioca passou quando do uso de militares para tentar garantir a ordem enfrentando quadrilhas armadas. Com armas que, como todos sabem, muitas vezes obtiveram com a ajuda de policiais corruptos e políticos da mesma índole. Mas são quadrilhas que jamais se organizaram. Tanto que lutam entre si.
Um exemplo de recorrerem – por questões políticas, até – às Forças Armadas ocorreu em novembro de 1994. Naquele mês, Marcello Alencar – que no ano anterior rompeu com Leonel Brizola e filiou-se ao PSDB – elegeu-se governador. Eleito, mas não empossado, quis tripudiar o governo pedetista e pressionou o presidente Itamar Franco. Este acabou por impor ao Rio, governado por Nilo Batista, do PDT, as tropas federais para “garantir a ordem pública”.
Tal como repete agora Temer, em uma jogada que tanto pode ser em busca de melhor popularidade como para esconder a falta de apoio para a tão prometida reforma da previdência. Promessa que jamais será cumprida com o decreto assinado na sexta-feira.
Pode não ter sido a “intervenção”, como a decretada por Temer, mas no fundo aquela e várias outras experiências no decorrer deste 24 anos foi como se fossem. Na realidade, as Forças Armadas assumiram o controle da segurança. Em 1994, criou-se uma situação que Arnaldo César já narrou aqui em Temerosa trapalhada. Vale, porém, relembrar alguns episódios.
O que Temer não mencionou na sua fala à nação e que sempre foi cobrado da União, é que o seu governo cortou verbas da Polícia Federal e das Forças Armadas que deveriam se encarregar, por exemplo, da vigilância nas fronteiras. Por lá é que entram drogas e armas.
Na época de Itamar, ele entregou ao general de Brigada Roberto Jugurtha Câmara Senna – até por recusa de generais mais antigos na patente – a chamada “coordenação da operação conjunta de combate ao crime no Rio”. A Folha de São Paulo, então, noticiou: “A Folha apurou que os generais mais antigos do Exército não queriam ser indicados para a coordenação do órgão criado ontem pelo presidente Itamar. O posto é visto como “um abacaxi“” – General fez segurança da Eco 92 (Edição de 2/11/1994).
No dia 23 daquele mesmo mês, uma quarta-feira, ao cercarem o morro da Mangueira, no bairro de Benfica, Zona Norte do Rio, os homens do Exército chegaram a revistar crianças e até mamadeiras de bebês, como alardeou, protestando, no dia seguinte, o insuspeito O Globo.
Na sexta-feira, 25, sob o comando direto do general Câmara Senna, e sob aplausos da grande mídia, dois mil soldados ocuparam os morros do Borel e da Casa Branca, que são contíguos, na Tijuca, Zona Norte do Rio. À noite, quem entrasse não saía mais. Ou seja, suspenderam o direito de ir e vir.
Na edição de sábado (26/11), O Globo, que em editorial da primeira página cumprimentava a Operação “pela prova de flexibilidade mostrada pelos militares em face da necessidade de correções de rumos“, referindo-se à suspensão das revistas em crianças, comemorava a ocupação dos dois morros na véspera, quando os militares derrubaram “o cruzeiro erguido pelo Comando Vermelho“.
Já na segunda-feira, ao informar a saída dos militares do morro no domingo, no mesmo jornal surgiram as primeiras denúncias de torturas. Partiram, principalmente, de duas freiras, missionárias do Sagrado Coração de Jesus – Maria do Rosário Porto e Tereza de Jesus Cavalheiro.
Foi nessa mesma segunda-feira, 28 de novembro, que pelo jornal O Dia, subimos o Borel e caminhamos pelo alto do morro, descendo pela Chácara do Céu, já no bairro do Andaraí.
O que reportamos no jornal de terça-feira (cuja edição não conseguimos localizar nos arquivos de O Dia) foram diversos casos de espancamentos e torturas cometidos, inclusive, na sacristia da pequena igreja São Sebastião, no alto do morro. Ali, também funcionavam, à época, uma creche e um ambulatório. Marcas de sangue ainda permaneciam por lá. Algumas vítimas, escondiam-se em suas casas.
Do então padre Olinto Pegoraro, da Ordem de São Camilo, que dedicou a maior parte da sua vida de sacerdote ao trabalho social naqueles morros, soubemos que o cruzeiro derrubado pelos militares não era obra dos traficantes. Foram os fiéis da igreja que, em 1979, o ergueram. Em direção ao cruzeiro, a comunidade católica fazia suas procissões e Vias Sacras. O padre, após abandonar a batina dedicou-se apenas às aulas de Ética na UERJ.
Um dia depois de subirmos o Borel, na terça-feira, em uma Kombi de O Dia, retornamos ao morro. Levamos junto, entre outros, o deputado federal Miro Teixeira (na época, PDT), o então procurador República dos Direitos dos Cidadãos, Gustavo Tepedino, Luiz Bazílio, pelo Grupo Tortura Nunca Mais. Confirmaram tudo o que o jornal noticiara naquela manhã. Entrevistaram vítimas. Constataram sangue ainda na sacristia da igreja, bem como em um dos bancos ali usados. Ouviram, por fim, a versão do padre Olinto sobre o cruzeiro que o Exército havia relacionado aos traficantes.
Naquele dia, cinco das vitimas acabaram encaminhadas à Polícia e foram levadas ao Instituto Médico Legal, onde foram constatadas “agressões”, como o próprio O Globo noticiou.
Em uma carta encaminhada ao general Câmara Senna, o padre Olinto falou em 15 pessoas vítimas de torturas, inclusive com choques elétricos e afogamentos em uma cisterna.
Tepedino, como procurador da República, já na quarta-feira despachou ofícios determinando a instauração de inquéritos pelas Auditorias Militares federal e estadual e ainda pela Polícia Civil. Relatou o que viu ao então procurador-geral da República, Aristides Junqueira. Como noticiou O Globo, ele buscava o paradeiro de um preso durante a Operação que não tinha sido mais localizado.
Parte do que viu no morro naquela terça-feira, o deputado Miro Teixeira relatou ao ministro do Exército, general Zenildo de Lucena, na quarta-feira, em uma sessão da Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados,à qual também compareceu o general Câmara Senna. Queixou-se, inclusive, da derrubada do cruzeiro, obtendo do ministro a promessa de que o símbolo religioso seria recolocado no alto do morro, tudo conforme relatado em O Globo de 1 de dezembro.
A nova cruz, com 10 metros de altura, 4,7 m de largura, pesando 700 quilos, foi recolocada com ajuda de um helicóptero da FAB no dia 17 de dezembro, como noticiou a Folha da S. Paulo. Sobre os torturados não se ouviu mais falar, até por desinteresse da imprensa e dos jornalistas, entre os quais o autor desta reportagem. Caiu no esquecimento.
Toda essa movimentação de tropas, porém, teve resultado pífio. Nenhum traficante maior chegou a ser pego. Também a quantidade de drogas apreendidas foi pequena. Em nada influenciou no problema da violência da cidade e daquela região do Rio de Janeiro. Serviu sim para queimar a imagem dos militares.
O tráfico no Borel só foi enfrentado corretamente quase 16 anos depois, em abril de 2010, quando, com tropas apenas da Polícia Militar, sete comunidades na região – Borel, Casa Branca, Morro da Cruz, Chácara do Céu, Catrambi, Indiana e Formiga – foram ocupadas militarmente, no preparo para a instalação da UPP. Não houve confronto, trocas de tiros ou qualquer outro incidente. A parti daí, passou a ser outra história. (…)