Em 2011, o delegado Cássio Luiz Guimarães Nogueira, pediu investigação de duas empresas sobre as quais hoje a Polícia Federal investiga. Mas o pedido dele jamais foi atendido. O texto acima foi editado da copia da representação que conseguimos da representação cuja íntegra é publicada abaixo.
Parte das dúvidas e questionamentos que a Polícia Federal demonstrou nas 82 perguntas encaminhadas ao presidente Michel Temer já poderiam estar esclarecidas, desde o início deste século XXI, não fosse a omissão de dois Procuradores-gerais da República – Geraldo Brindeiro, mais conhecido como “engavetador-geral da República”, e Roberto Gurgel – e do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Os três, em um espaço de dez anos – 2001 e 2011 – não permitiram que fossem investigadas as denúncias de que Temer, como deputado e presidente da Câmara dos Deputados (1997-1998) recebeu propinas pagas por empresas que atuavam no Porto de Santos, desde 1995. A partir daquele ano, na gestão de Fernando Henrique Cardoso na presidência da República (1995/2002), e nos períodos em que o PMDB (1983/1994) e o PSDB (de 1995 aos dias atuais) governaram São Paulo, foi Temer quem indicou os presidentes da Companhia Docas do Estado de São Paulo (CODESP). E dela se beneficiou.
Das caixinhas pagas pelas empresas que atuavam no porto, segundo denunciou a então estudante de psicologia, Erika Santos, na Vara de Família, já em 2000, início do século, metade dos recursos eram destinados ao então deputado/presidente da Câmara Temer. A outra metade era dividida em duas partes entre o seu então companheiro, Marcelo de Azeredo. Este sempre ocupou cargos públicos, desde 1987, culminando com a presidência da CODESP (1995/1998) por indicação de Temer, prócer do PMDB. Os outros 25% iam para o então desconhecido “Lima”, mais tarde identificado como o coronel reformado da PM-SP, João Baptista de Lima. Sua identificação. segundo revelou a revista Época – Operador ligado a Temer admite ter recebido R$ 1 milhão da Engevix – surgiu na delação de José Antônio Sobrinho, dono da Engevix.
A denúncia da gorda caixinha abastecida por operadores do Porto de Santos, bem como sua divisão em três partes, estão relatadas na Ação de Reconhecimento e Dissolução Estável, Cumulada com Partilha e Pedido de Alimentos, ajuizada na 2ª Vara de Família, Órfãos e Sucessão, de São Paulo, em 2000. Já em 2001, Brindeiro recebeu cópia das mesmas, mas justificando seu codinome – “engavetador-geral da República” – não levou o caso adiante. Como sempre, alegou “inexistência de suporte mínimo de indícios a justificarem a persecução penal, tampouco a prática de qualquer crime por parte do deputado federal Michel Temer”.
Em 2011, quando a Vara Federal de Santos encaminhou ao STF um pedido do então delegado federal, Cássio Luiz Guimarães Nogueira, de aprofundamento das investigações em torno das denúncias de Érika, foi a vez de Gurgel omitir-se. Segundo seu despacho, as provas colhidas no inquérito 3105/SP, “não trouxeram elementos novos que autorizem a reabertura da investigação, já arquivada, contra Michel Temer”. O parecer de Gurgel foi prontamente acatado pelo ministro Marco Aurélio Mello. Tudo como divulgamos na série de reportagem que publicamos em conjunto no site Diário do Centro do Mundo – DCM – Temer ignorou pedidos da PF para se explicar no caso da propina no Porto de Santos, – e aqui no Blog: A PGR omitiu-se na denúncia da caixinha do Porto de Santos para Michel Temer
O pedido, porém, não se resumia a Temer. Seu nome e seu CPF sequer constavam da representação apresentada pelo delegado Cássio Luiz. Até então a investigação girava em torno dos demais denunciados na ação da Vara de Família – notadamente Azeredo e sua irmã Carla de Azeredo, cujas quebras de sigilos foram pedidas. Ao justificá-las, o delegado expôs seu objetivo:
Na ação na Vara de família já se falava da caixinha distribuída entre Michel Temer (MT), Marcelo Azeredo (MA) e Lima (L) e se citava propinas pagas pela Rodrimar, hoje alvo da investigação da Polícia Federal, assim como o coronel João Baptista de Lima, o “L”.
“a) descobrir as supostas fontes de recursos financeiros utilizados no esquema criminoso (empresas concessionárias no Porto de Santos e seus representantes legais que tenham obtido qualquer tipo de vantagem fraudulenta mediante a participação em licitação, aditivos em contratos vigentes, acrescidos de áreas concedidas, etc.);
b) identificação dos membros que orbitavam na suposta Organização Criminosa – “VANDER”, “LIMA”, “RA”, “DM”, “AG”, “MA” e “MT” (vide fls.339/346) com o levantamento das ações e das vantagens que cada um tenha percebido com as ações ilícitas, identificação do destino dos recursos obtidos para sua apreensão ou sequestro com o fim de recuperar eventual“. (grifo do original)
A planilha onde aparecem estas siglas e valores pagos pelas empresas constava da ação na Vara de Família. Sua revelação gerou controvérsias. Desde o início falou-se que os dados foram retirados por Érika de um computador do ex-companheiro. Esta versão foi endossada pelos dois advogados que prepararam o pedido de reconhecimento e dissolução de união estável, ao deporem na Polícia Federal de São Paulo: Martinico Izidoro Livovschi (já falecido) e Sérgio Paulo Livovschi, respectivamente pai e filho. Ao Blog, Sérgio Paulo afirmou que a ação foi revista e emendada por Érika, antes de ajuizada.
A ex-companheira de Azeredo, porém, desautorizou os dois, trocou de advogado e, através do novo patrono, José Manuel Paredes, retirou a ação e se entendeu com o ex-companheiro. Consta que ela teria alegado que não pretendia fazer uma “queixa-crime”, como acabou se transformando a ação na Vara de Família.
Aliás, graças a esta improvisada “queixa-crime” é que foi possível descobrir o esquema da caixinha do Porto de Santos. Faltou apenas interesse político e público em aprofundar suas denúncias. Mesmo sem saber, prestou um serviço à comunidade com essas denúncias.
Aliás, denúncias que ela, na única vez que foi ouvida pela Polícia Federal, na capital paulista, negou serem suas. Na sua versão, recebeu um pacote fechado com papéis que sequer abriu. Encaminhou-o aos advogados Livovschi que, sem sua autorização, usaram na petição inicial. Versão desmentida por Sérgio Paulo. A contradição entre advogados e clientes narramos na reportagem Venceu a impunidade: investigação das propinas em Santos envolvendo Temer foi arquivada:
“Érika também tentou negar que partisse dela as denúncias das propinas que teriam beneficiado o ex-marido e o então deputado Temer. Disse ter recebido documentos anonimamente e encaminhados aos seus dois advogados, Martinico Izidoro Livovschi e seu filho Sérgio, Segundo ela, só ao ler a ação no fórum, foi que ficou sabendo “dos fatos supostamente delituosos imputados a Marcelo”. Negou ainda ter autorizado os advogados a “fazerem essas denúncias contra seu ex-companheiro”.
Ela, porém, foi desmentida pelos advogados Livovschi, pois os dois garantiram que a minuta da inicial da ação lhe foi apresentada e ela, em um fax, fez modificações e acréscimos. Pai e filho, em depoimentos separados, fizeram o delegado registrar que “as denúncias ali constantes foram feitas obedecendo a uma exigência de Érika que acreditava que as mesmas poderiam pressionar Marcelo a realizar um acordo rapidamente”.”
Seja como for, o fato é que desde 2000 a Polícia Federal e a Procuradoria da República poderiam ter investigado Temer por conta da corrupção denunciada no Porto de Santos. Não faltaram alertas sobre isso quando a história veio a público. Aliás, um ano antes, em junho de 1999, como narramos na postagem feita no DCM – Como Temer operava no Porto de Santos, segundo ele mesmo e sindicalistas -, Andrei Meireles e Guilherme Evelin, em reportagem na revista Isto É, revelaram uma denúncia feita pelo então presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães, sobre Temer:
“Denúncias de irregularidades na Companhia Docas Porto de Santos, dirigida por apadrinhados de Michel Temer, estão sob investigação do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União (TCU). Em maio, a construção do terminal II do porto de Santos foi suspensa pelo TCU por causa de aditivos contratuais com a empreiteira Andrade Gutierrez que encareceram em 141,21% o preço original da obra. “As coisas morais nunca foram o forte do senhor Temer. Se abrir um inquérito no porto de Santos, ele ficará péssimo”, disparou ACM na segunda-feira 14”.
Dez anos depois, o delegado Cássio Luiz queria investigar as denúncias. Na petição que apresentou, como mostramos acima e reproduzimos a íntegra abaixo, ele já citava as duas empresas que hoje a Polícia Federal investiga – Rodrimar e Argeplan, que pertence ao coronel Lima.
Mais ainda, pediu informações sobre a Concais S/A, que administrava o terminal de passageiros em Santos. Esta empresa foi presidida, até 2014, por Carlos César Floriano. O mesmo que, em 2013, na Operação Porto Seguro, desenvolvida pela Polícia Federal e a Procuradoria da República, presidia a empresa Tecondi (Terminal de Contêineres da Margem Direita S/A) e foi acusado de corrupção ativa após se beneficiar de um parecer técnico do governo federal comprado por R$ 300 mil, conforme reportagem de O Estado de S. Paulo, em 29 de janeiro de 2013 –Grampo mostra proximidade de ex-secretário com acusado pela Porto Seguro.
Cabe lembrar que muitas das denúncias feitas na Vara de Família acabaram se confirmando, não pela Polícia Federal, mas pela Receita Federal, como mostramos em Autuação da Receita confirma denúncias das propinas em Santos. Temer foi poupado.
Tanto Azeredo como sua irmã Carla foram autuados e pagaram multas elevadas – ele, R$ 926.427,63, e sua irmã, mais R$ 100.123,32 – por sonegação de impostos, conforme se constata nos recursos apresentados pelos dois ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF. Na investigação de ambos descobriu-se patrimônio a descoberto, isto é, bens e movimentações financeiras para os quais ambos não tinham receita lícita declarada.
Tal como constou das acusações de Érika, a Receita confirmou que carros como um Porsche Carrera, ano 1997, modelo 1998, segundo a denúncia, comprado por Azeredo, estava no nome da irmã. Mas ela não tinha fonte de renda para justificar o valor pago. Por isso, alegou que o Porsche foi permutado pela Mercedes Benz do pai dos dois, Ronaldo Pinto de Andrade. O Mercedes também teria sido pago por Azeredo, mas colocado no nome do pai, afirmou a ex-companheira, na ação ajuizada em 2000. Na fiscalização, os auditores da Receita ainda descobriram, no ano de 1999, nada menos do que 133 depósitos em suas contas bancárias que Azeredo não conseguiu justificar.
Os indícios contra Temer que Brindeiro e Gurgel disseram não ter encontrado foram, apresentados – conforme noticiamos também – pela revista Brasileiros divulgou em 30 de maio de 2016 – Patrimônio de Temer mais do que dobrou entre 2006 e 2014:
“Em 1998, contabilizava bens que totalizavam R$ 2.971.177. Depois registrou uma perda patrimonial, pois em 2006 declarou que eles somavam R$ 2.293.646. Em 2010, subiu para R$ 6.052.779 e atingiu R$ 7.521.799 em 2014“, resumimos na postagem Autuação da Receita confirma denúncias das propinas em Santos. Temer foi poupado.
Depois de ter sido encaminhado ao Supremo, onde permaneceu por um bom tempo parado até ser remetido a Gurgel, os dois inquéritos, da capital – 20.352/2004, da Delegacia de Prevenção e Repressão a Crimes Fazendários (DELEFAZ) da Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal em São Paulo (SR/DPF/SP) -, e o 104/2006, da Delegacia de Santos, que investigava a corrupção, foram devolvidos às delegacias de origem.
Em 2011, o delegado Cássio fez a petição, cuja íntegra vai abaixo e a remeteu à Justiça de Santos. Não mais teve contato com o caso, já que sua investigação foi anexada à de São Paulo e passou a tramitar na 6ª Vara Federal, na capital.
Em agosto de 2016, ao serem analisados pela procuradora da República Karan Louise Jeanette Kahn e sua equipe constatou-se o óbvio: os possíveis crimes estavam prescritos. Restaria apenas a lavagem de dinheiro, que pode ser considerado crime permanente. Mas, decorrido tanto tempo, não haveria como confirmá-la.
Não era para menos. Se a investigação já acumula mais de uma década de idas e vindas entre a SR/DPF/SP, as Procuradorias da República em São Paulo e Santos, a 2ª Vara Federal Criminal de Santos, a 6ª Vara Federal de São Paulo a Procuradoria Geral da República (PGR) e o STF, o caso em si, isto é, os supostos crimes cometidos – corrupção, fraude em licitação e lavagem de dinheiro – eram ainda mais antigos. Datam do período em que, indicado por Temer, Azeredo presidiu a CODESP: junho de 1995 e maio de 1998.
A revelação deles, porém, só surgiu no ano 2000. Com toda a demora e a falta de interesse político demonstrado, Temer se beneficiou, jamais foi investigado e assim galgou a vice-presidência da República e, com o golpe midiático-parlamentar de 2016, chegou à presidência. Curiosamente, ele pode cair por conta de relações que vem mantendo com operadoras do Porto de Santos. Se antes tivessem investigado a sério, talvez a vida política dele não tivesse prosperado e o país teria sido poupado desse seu governo desastroso.
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