Publicado no Instituto Humanistas Unisinos
“Infelizmente, esta crise expressa de maneira extraordinária a violência das desigualdades sociais e, portanto, a necessidade urgente de encontrar outro modelo econômico”.
Thomas Piketty não esperou a Covid para denunciar as profundas divisões que permeiam nossas sociedades ocidentais. “Tivemos a brutal confirmação de que, mesmo em nossos países europeus, muitos cidadãos não são cobertos pelo sistema de proteção social”, observa o economista francês que publica “Capital e ideologia”, a sequência natural de “O Capital no século XXI”, bestseller mundial em 2013. No novo ensaio que traça a história das desigualdades, não apenas no Ocidente, Piketty apresenta propostas para redistribuir a riqueza, como uma herança para todos, a cogestão das empresas, a propriedade temporária, um imposto sobre os rendimentos mais altos até 90%”.
A entrevista com Thomas Piketty é de Anais Ginori, publicada por La Repubblica, 07-06-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
O que mais lhe impressiona na situação atual?
Nos últimos dez anos, celebramos os trabalhadores independentes, os jovens das start-ups, o pessoal do NIF (número de identificação fiscal). Hoje percebemos que muitas dessas pessoas tiveram que continuar trabalhando durante o lockdown porque não tinham outra forma de renda. E na crise econômica que está começando, eles serão os mais atingidos. A outra coisa a notar é que os Estados se endividam para responder à emergência, o que é completamente natural, mas não falam tudo.
Ou seja?
Após a primeira e a segunda guerra mundial, as dívidas públicas subiram para 200, até 300% do PIB. Aconteceu na Alemanha, Japão, França. Estamos caminhando para cenários similares. Não é algo novo nem preocupante por si só, porque existem soluções. O importante é dizer a verdade: no final, alguém terá que pagar. A dívida pública não desaparece como se fosse por milagre.
Quem, em sua opinião, deveria pagar?
É a pergunta fundamental a que muitos governos fogem. Seria bom pensar que ninguém terá que fazer sacrifícios no final. Não é verdade. Se olharmos para as crises do passado, existem duas hipóteses. A inflação pode ser criada, o que significa que quem pagará serão as classes mais pobres e os pequenos poupadores. Ou se pode fazer contribuir as pessoas com rendas mais altas e patrimônios através de alíquotas progressivas. Em muitos países da Europa, já existe uma maioria de cidadãos a favor de um imposto sobre o patrimônio. Os governos agora não querem falar sobre isso, mas serão forçados a fazê-lo nos próximos meses.
Uma crise como a que estamos enfrentando tem precedentes históricos?
No livro, lembro do debate sobre as consequências da Grande Peste que, segundo alguns medievalistas, haviam permitido reduzir as desigualdades e até a servidão. Para outros estudiosos, o que aconteceu foi o contrário. Na Europa, especialmente na parte oriental, a servidão se fortaleceu porque as classes dominantes, clero e nobres, quiseram recuperar o que foi perdido durante a epidemia. É o que poderia acontecer hoje.
O mundo pós-covid será ainda mais injusto socialmente?
As crises, como tais, não têm uma saída política específica, depende sempre de qual narrativa assume a melhor. A Covid não nos permitirá superar as relações de poder entre dominantes e dominados nem reverter a tendência que vem ocorrendo desde os anos 1980. Se realmente queremos entrar em um novo mundo, precisamos desconstruir a ideologia de nossos regimes embasados na desigualdade.
Os governos conseguiram parar a economia para salvar vidas humanas. Você esperava isso?
Foi justo fazê-lo diante de uma ameaça sanitária, mas agora vamos usar a mesma flexibilidade mental para olhar para os desafios ecológicos e sociais. Os primeiros sinais não são animadores. A prioridade parece ser recomeçar como antes.
O Recovery Fund proposto pela Comissão Europeia é um bom sinal?
É melhor que nada, mas continuamos presos a um sistema de governo europeu opaco, vinculado à regra da unanimidade entre 27 governos que tornará atribulado o caminho da aprovação da proposta da Comissão. E quando houver o Recovery Fund, um único governo poderá colocar o veto sobre o que pedirão para fazer Itália, Espanha ou qualquer outro país europeu.
Você está se referindo à resistência dos países “frugais”?
Vamos parar de tentar convencê-los. Vamos seguir em frente com um grupo de países voluntários. Na França, Itália, Alemanha e Espanha já existe uma maioria política para apoiar investimentos conjuntos com atenção ao meio ambiente e às desigualdades sociais. Ao contrário do que muitos dizem, receio que, a médio prazo, o mecanismo institucional do Recovery Fund não resolva o divórcio que existe entre muitos cidadãos e a Europa. Pelo contrário, o fortalecerá porque avança sobre uma única perna, a das despesas orçamentárias. E esquece outra, a dos rendimentos, ou seja, da receita fiscal.
A Itália será o país que mais se beneficia do Recovery Fund.
Poderia ser um entusiasmo efêmero aquele da Itália. Nos últimos anos, tivemos muitos conselhos europeus que teoricamente salvaram a Europa. Enquanto isso, houve o Brexit, a ascensão dos nacionalismos, e o projeto europeu perdeu definitivamente a adesão dos eleitores das classes médio-baixas.
O desafio ecológico, para o qual muitos jovens se mobilizaram, será esquecido pelos governos?
Seria um verdadeiro erro subsidiar apenas atividades de altas emissões de CO2. Setores como o automobilístico ou têxtil terão que reduzir sua parcela de atividade gradualmente, mas de forma decisiva. Se não aproveitarmos esta oportunidade para reajustar nossas prioridades, quando o faremos? Novos empregos também podem ser criados com as medidas para o isolamento térmico, o desenvolvimento de energias renováveis. Proponho no livro um imposto progressivo sobre as emissões de CO2, concentradas principalmente por sujeitos com alta renda e altos patrimônios nos países mais ricos.