Por Eugênio Aragão, jurista e advogado, ex-ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff
O espaço aéreo europeu está fechado para os voos da Belavia, a empresa de transporte civil da Bielorrússia. Os aviões europeus, também, evitam o espaço aéreo bielorrusso depois de incidente havido com avião de carreira da empresa irlandesa de baixo custo Ryanair que, em voo entre Atenas e Vílnius, foi forçado pelas autoridades bielorrussas a pousar em Minsk, sob o pretexto de que tinha sido comunicada a presença de uma bomba a bordo, fato que não se confirmou. Mas, deu-se que as autoridades bielorrussas prenderam dois passageiros na escala forcada, um dissidente bielorrusso e sua namorada russa.
A Europa – e seu aliado norte-americano – logo deram a entender que o procedimento era inusitado e escandaloso, demandando duras sanções contra o governo da Bielorrússia, tido como autoritário. Não tolerariam, os países europeus, esse tipo de atentado oficial à segurança aérea, com provável objetivo de capturar um adversário do regime. O barulho não cessou até agora, semanas após o incidente.
Assistimos a uma encenação hipócrita. Seguramente forçar o pouso de aeronave civil de transporte de passageiros para arrebatar pessoa procurada por motivos políticos é condenável sob todos os aspectos e, de certo, não se adequa às regras da Organização Internacional de Aviação Civil. Mas, convenhamos, o governo bielorrusso não inovou na prática. A Europa que esperneia histericamente com o episódio protagonizou em 3 de julho de 2013 prática idêntica, com a agravante de ter colocado em risco a vida e a integridade de um chefe de estado, cuja imunidade foi flagrantemente desrespeitada.
Naquele dia, o presidente boliviano Evo Morales estava viajando de volta de uma visita oficial que fizera a Moscou. Na rota, estava o espaço aéreo de diversos países europeus, com o plano de voo já aprovado. Evo Morales voava no avião presidencial da força aérea boliviana.
Eis que, ao pretender ingressar no espaço aéreo francês, foi avisado de que o trânsito não seria permitido, haja vista a suspeita da presença de Edward Snowden, que vazara informações secretas do governo norte-americano para a plataforma Wikileaks e, por isso, era um fugitivo político da justiça dos EEUU. Snowden, como é sabido, se encontrava em Moscou, com asilo político concedido pelo governo russo.
A Europa pretendia forçar o pouso do avião presidencial boliviano para de lá sacar à força Edward Snowden e extraditá-lo aos EEUU. Depois de horas sobre o espaço aéreo polonês e alemão, logrou fazer um pouso de emergência em Viena, Áustria, onde a aeronave foi vasculhada. Como Snowden não estava a bordo, foi só então autorizada a continuidade do voo para La Paz.
O episódio tem duas agravantes em relação ao pouso forçado do avião da Ryanair em Minsk. Em primeiro lugar, tratava-se de meio de transporte de chefe de estado a quem o direito internacional reconhece imunidade absoluta. Em segundo lugar, houve risco real à vida de Evo Morales, que fez o pouso em Viena já quase sem combustível.
É essa Europa, que queria arrebatar o inimigo político dos EEUU Edward Snowden da aeronave oficial boliviana que hoje fica a espernear com o incidente na Bielorrússia. Certamente sua real inconformação tem pouco ou nada a ver com os métodos do governo bielorrusso.
Na verdade, o conflito entre Bruxelas e Minsk parece muito mais dizer respeito aos interesses hegemônicos da aliança militar com os EEUU do que à “pirataria aérea” de que acusam o governo bielorrusso. O presidente Lukashenko não é lá um declarado democrata, mas a Europa convive bem com vários autocratas mundo afora. O problema do chefe de estado bielorrusso é, porém, sua forte vinculação à Rússia, com a qual mantém relação estratégica e de amizade, impedindo, com isso, o cinturão militar da OTAN em volta dos países bálticos. No fundo, os europeus gostariam muito ter em Minsk um governo pró-ocidental, à imagem e semelhança do governo ucraniano. Lukashenko é uma pedra no sapato da OTAN a impedir sua expansão para o leste.
Ainda chegará, porém, a hora de os europeus refazerem suas contas. Enquanto a OTAN é um construto ultrapassado da guerra fria, que hoje só atende aos interesses da hegemonia norte-americana, a integração euro-asiática é um fato inexorável e ela passa pelo convívio amistoso com a Rússia e a China, que têm razões históricas e geográficas para a cooperação com a Europa. Um mercado que possa se estender entre Tóquio e Lisboa em continuidade terrestre é o futuro do bem-estar econômico dos povos ali assentados. E é muito mais promissor que a aliança atlântica com um parceiro que pensa só em “America First”. Talvez isso faça os europeus pensarem um dia em quanto infrutífera terá sido sua hipocrisia para com o governo de Minsk.