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No discurso no Congresso no dia 29 de abril por ocasião dos primeiros 100 dias de governo, o presidente Joe Biden assentou as bases do ambicioso projeto hegemônico e de poder imperial dos EUA no mundo.
Biden começou o discurso de 1 hora e 6 minutos de duração saudando a realização de mais de 220 milhões vacinas neste curto período do mandato, e o compromisso de vacinar de imediato toda a população acima de 16 anos. Não é pouca coisa. Virando rapidamente a página da pandemia, os EUA aceleram a retomada da trajetória do seu autodeclarado Destino Manifesto.
Para isso, Biden ancora sua estratégia num tripé que rompe dogmas do paradigma neoliberal do Estado minimalista e da austeridade fiscal “a qualquer custo”: [i] o plano de resgate estadunidense, [ii] o plano de emprego estadunidense, e [iii] o plano das famílias estadunidenses.
Estes 3 planos, que deverão acarretar um dispêndio de 5 trilhões de dólares – mais de 3 vezes o PIB do Brasil –, representam um processo articulado para enfrentar simultaneamente, e num esforço de guerra, a fome, a miséria, o desemprego, o empobrecimento, a quebradeira, a desproteção social, os investimentos, a infraestrutura, as perdas salariais, a defasagem tecnológica e a perda de influência no comércio mundial.
Somente em garantia de renda familiar, o governo federal já concedeu 1.400 dólares a 160 milhões de lares estadunidenses, o equivalente a 85% dos domicílios do país.
Em artigo no New York Times [2/5], o professor de Yale Samuel Moyn assinala que “Se os primeiros 100 dias de Biden diferem significativamente do New Deal; no entanto, o medo que motivou os democratas naquela época é a melhor explicação para suas ações iniciais, especialmente quando se trata de repensar o contrato social americano. Em sua primeira posse, Roosevelt alertou contra o próprio medo. […] Mas o terror sobre os riscos à estabilidade e à riqueza está por trás de uma redefinição da justiça social e da ascensão de um novo tipo de Estado”.
O professor aponta que “o reequilíbrio de Biden quanto à justiça tributária para indivíduos leva o país de volta, como o presidente reconheceu na quarta-feira, aos níveis de George W. Bush, de menos de 40% para a faixa mais alta de impostos, não aos níveis de Roosevelt, de 94% em seu auge, ou mesmo antes de Reagan, aos níveis de 70%”.
Trata-se, ainda assim, inequivocamente, de um pujante esforço para garantir a coesão social e evitar conflitos que poderiam assumir consequências incontroláveis, sobretudo desde a emergência do movimento antirracista pós-assassinato de George Floyd. Para o diretor do Conselho de Política Econômica Brian Deese, a capacidade do Biden “de sustentar uma boa política está ligada à sua capacidade de sustentar o apoio político para essa boa política”.
Aquilo que entusiastas apressados das propostas de Biden saúdam como um “giro humanista” do capitalismo ou um “novo” New Deal – e alguns, inclusive, lunaticamente proclamam o fim do neoliberalismo –, é, na realidade, o posicionamento hegemônico dos EUA no contexto da competição geopolítica com a Rússia e, principalmente, com a China, na disputa pela hegemonia e pelo poder mundial.
O lema de Trump América First! está bem vivo em Biden: “O dinheiro dos impostos dos estadunidenses será utilizado para comprar produtos estadunidenses feitos nos EUA!”, ele declarou.
Numa alusão ao bipartidarismo da política externa estadunidense, o colunista do NYT destaca que Biden está “adotando tão vigorosamente o modelo de competição de grandes potências com a China que Trump adotou – talvez até uma nova Guerra Fria”.
Em matéria de política externa, aliás, e numa prova do caráter bipartidário e estamental quanto a conflitos sensíveis, até o presente Biden não se diferenciou de Trump em relação ao apoio ao esdrúxulo autodeclarado presidente Juan Guaidó, assim como a respeito da sede da embaixada dos EUA em Jerusalém e do bloqueio a Cuba, para ficar somente nestes exemplos.
O discurso de Biden sobre medidas domésticas é entremeado com referências da disputa geopolítica e da proclamação do papel “divino e civilizatório” dos EUA no mundo [Destino Manifesto]: “Estamos competindo com a China e outros países para ganhar o século XXI”; “Não há razões para que os trabalhadores estadunidenses não possam liderar o mundo na produção de veículos elétricos”; “Temos a população mais inteligente e melhor capacitada do mundo”; “Temos que desenvolver e dominar os produtos e tecnologias do futuro, as baterias avançadas, a biotecnologia, os chips, a energia limpa”; “Não podemos estar tão ocupados competindo entre nós esquecendo a competição que temos com o resto do mundo para ganhar o século XXI”; “Estados Unidos é uma ideia, a ideia mais única da história. É o que somos”.
O dispendioso Plano Biden será pago não com impostos arrecadados do povo estadunidense, mesmo que o mandatário imperial tenha anunciado projeto de tributar algumas centenas de multibilionários, porque será pago através do endividamento infinito da potência imperial mediante a emissão de dólares sem lastro.
Ou seja, países e povos da periferia do capitalismo serão chamados a financiar esta festança no império, que não hesitará em lançar mão de guerras, se este também for um expediente necessário para viabilizar seus objetivos na competição geopolítica por hegemonia e poder.
Como recordou o colunista do NYT Samuel Moyn, “o New Deal realmente mudou os Estados Unidos quando terminou não em um estado de bem-estar, mas em um estado de guerra – e isso provou ser uma catástrofe para o tipo de reforma ambiciosa que Biden diz desejar”.
Romantismo, ingenuidade ou o desejo pueril de que o capitalismo se humanize ou de que o neoliberalismo acabe por si mesmo são sentimentos que até podem aplacar aflições intelectuais, mas em nada ajudam na compreensão sobre o imperialismo e a dominação imperial desempenhada pelos EUA no mundo.