Originalmente publicado no FACEBOOK
Por João Brant
Por quase um século, as democracias ocidentais desenvolveram um modelo de regulação do rádio, da TV e, em alguns casos, também dos jornais impressos. É certo que a escassez de frequências era uma das justificativas para a regulação da radiodifusão, mas toda a racionalidade do modelo de regulação e do modelo de desenvolvimento dos sistemas públicos de comunicação partia do princípio de que concentração de poder na comunicação afeta diretamente a democracia.
Ante esse fato, criaram-se modelos de legislação, regulação e políticas públicas que tinham como foco garantir pluralismo e diversidade, proteger e promover a liberdade de expressão e equilibrar a liberdade de expressão com outros direitos fundamentais. Neste contexto, incitação à violência e promoção da subversão da ordem democrática sempre foram proibidos em grande parte das democracias consolidadas.
No desenvolvimento da Internet, muita gente achou que a questão de concentração de poder estava superada. À medida que as redes sociais foram ganhando mais poder, o que ficou nítido a partir especialmente a partir de 2010, foi ficando evidente para todos os que vinham do debate da regulação das comunicações que o poder que estava se concentrando ali tinha efeito muito maior que o econômico. Era preciso se antecipar, para evitar chegar ao ponto em que a esfera pública estivesse completamente dominada por poucas empresas. Mas o temor do poder de censura estatal e da tentação autoritária de governos fez (e faz) muitas organizações da sociedade civil e pesquisadores acharem que não valia a pena apostar na regulação pública.
O problema é que a discussão sustentada em tecnologia foi se mostrando insuficiente para dar conta do novo cenário de organização da esfera pública, dos ambientes de troca e circulação de informação. Em abril de 2016, levamos (pelo Ministério da Cultura) esse tema à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos.
Poucos meses depois, o episódio do Brexit e a eleição de Trump, entremeados pelo escândalo da Cambridge Analytica, evidenciaram que havia um problema. Desde então, as evidências se multiplicaram. Em 2020, o caldo entornou. E 2021 se iniciou com o banimento de Trump do Twitter e a suspensão pelo Facebook.
Tratados e legislações internacionais exigem, para que se imponham limites à liberdade de expressão, que elas passem no teste dos três passos: legalidade, necessidade e proporcionalidade. Mas todo o sistema foi pensado baseado na lógica de aplicação pública dessas respostas e de supervisão judicial dessas medidas.
Ou seja, o mais forte para mim, e que tenho visto se discutir pouco, é que não deveria caber ao Twitter e ao Facebook serem ao mesmo tempo promotor e juiz, ainda mais quando eles são, também, parte, legislador e, em última instância, tribunal de apelação.
A discussão, então, deve ser vista em duas partes, de mérito e de forma/processo.
No mérito do caso concreto, acho que a retirada do conteúdo de Trump tem sustentação legal, era necessária (por incitação à violência e à subversão da ordem democrática) e seria proporcional, ainda mais considerada a gravidade das consequências. Já o banimento da conta (no caso do Twitter) me parece que não responde à necessidade muito menos à proporcionalidade. A suspensão do Facebook é mais defensável, mas precisaria ser discutida a partir de parâmetros de direitos humanos.
Mas é na forma e no processo que está o maior problema. Dada a centralidade desses meios de comunicação para a organização da esfera pública, e, portanto, da democracia, os processos de moderação de conteúdo deveriam responder a parâmetros públicos definidos por lei. Pelo volume e velocidade, a aplicação inicial desses parâmetros deveria se dar pelas plataformas, mas com supervisão pública por órgãos reguladores independentes e em diálogo com os mecanismos tradicionais de justiça (Ministério Público, juízes, defensorias etc.).
Não deveríamos estar discutindo a ação do Twitter com base na política do Twitter, mas sim uma ordem legal com base em legislações nacionais (coerentes com os tratados e legislações internacionais).
É claro que, na ausência desses ordenamentos, é importante que haja ação das plataformas. Mas o poder absoluto que elas têm é inconcebível numa democracia. Sanções proporcionais poderiam ter impedido cautelarmente a difusão dos discursos de Trump (desde antes, inclusive), mas é preciso garantir o devido processo legal.
A Europa e o Reino Unido lançaram em dezembro propostas de regulação sobre o processo de moderação de conteúdo. O Digital Services Act (Europa) e o Online Harms Bill (Reino Unido) apontam caminhos possíveis para lidar com o tema. O que não dá mais é para negligenciar os 100 anos de debate sobre regulação democrática das comunicações e naturalizar o absolutismo das plataformas.
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João Brant é militante da comunicação e da cultura, ajudou a fundar o Intervozes e trabalhou como assessor especial na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e como secretario executivo do Ministério da Cultura.