A falta de uma religião tal como conhecemos no Ocidente é uma vantagem competitiva chinesa
Leio, no iPad, a monumental História da Inglaterra de David Hume, filósofo, historiador e escritor inglês do século XVIII. (O iPad é uma festa para quem quer encontrar e ler clássicos de graça.)
Hume, um dos grandes ideólogos do liberalismo, viveu e morreu como um verdadeiro filósofo. Era um homem simples, frugal, honesto, leal, corajoso, moderada até em sua única vaidade — literária. Segundo seu amigo e admirador Adam Smith, Hume chegou moralmente ao ponto mais alto que a fragilidade humana permite.
Vários trechos da A História da Inglaterra me despertam a atenção admirada. Num deles, no capítulo que trata de Carlos I, o rei inglês que se bateu com o Parlamento e acabou deposto e decapitado em meados do século XVII na primeira revolução burguesa da humanidade, Hume lança um olhar para a influência da religião entre os britânicos nos dias do monarca infeliz.
Assim disse Hume: “De todas as nações européias, a Grã Bretanha era naquele momento, e por muito mais tempo, a mais influenciada por aquele espírito religioso que tende mais a inflamar o fanatismo do que a promover a paz e a caridade.”
São palavras eternas.
Lamentavelmente, ao longo da história, a religião tem servido muito mais para piorar do que para melhorar as pessoas e a sociedade. Quem acaba dominando-a não são os moderados, os tolerantes, aqueles que aceitam a diversidade. São os radicais, os fanáticos, os que acham que podem matar os infiéis em nome de seu Deus, seja qual for.
O filósofo inglês Bertrand Russell atribuiu ao judaísmo, no Ocidente, a semente da ideia de que uma religião é melhor que outra ao estabelecer que os judeus eram o povo escolhido. Os cristãos, posteriormente, trucidaram ignominiosamente os judeus por entender que escolhidos, na verdade, eram eles. Depois os cristãos se destruíram uns aos outros, quando Lutero inventou o protestantismo. Os muçulmanos já surgiram com a convicção de que Alá é o único deus genuíno.
Tenho para mim que um dos maiores fatores do fenômeno chinês está na ausência de religião e da figura de Deus. A China era a civilização mais adiantada do mundo quando foi pilhada pelos britânicos no século 19, superiores em uma única coisa: canhões. Depois dos britânicos, outras potências militares ocidentais foram tirar sua fatia da China — já então um mercado cobiçado de 400 milhões de pessoas. E quando parecia que nada mais poderia castigar a China apareceram seus vizinhos japoneses.
A China poderia ter virado um figurante no mundo. Mas não: se reergueu depois de tantas agressões predatórias, e ninguém acredita que em dez anos ela já não tenha ultrapassado os Estados Unidos como superpotência número 1. (Sempre existe a possibilidade, é claro, de que os americanos inventem um pretexto para declarar guerra à China.)
A impressionante resistência chinesa deve muito à inexistência de religião tal como conhecemos. Confúcio, o grande filósofo que estabeleceu as bases éticas que governam a China há 2 500 anos, acabou fazendo o papel de Deus para os chineses com a vantagem de não ser Deus e nem ser entendido como tal. Confúcio pregou três coisas, essencialmente: os jovens devem ser muito bem instruídos; os amigos devem ser leais uns aos outros; e os filhos devem cuidar exemplarmente dos velhos.
Confúcio deu aos chineses um guia de conduta prático e sempre atual. A musculatura interior veio do budismo, em que não existe a figura de Deus. Buda era um ser humano como todos nós — entregue às tentações, cheio de dúvidas, repleto de tentações. Na fraqueza aparente de Buda diante dos deuses de outras religiões estava, paradoxalmente, a força do budismo — e em consequência da China.