A privatização da Eletrobras está prestes a acontecer. Além do próprio governo, parte significativa dos parlamentares, especialistas do setor elétrico e parte da mídia, consideram que sua efetivação é um passo importante para a maior eficiência da economia brasileira. Os argumentos apresentados aqui remam no sentido contrário dessa correnteza objetivando redução do custo de energia limpa e maior competitividade da economia brasileira em um mundo global como o atual. Como muitos debates relevantes para a sociedade brasileira, a privatização da Eletrobras tem caído na vala comum de escolhas ideológicas entre os “liberais” (a favor) e os “estatistas” (contra).
Com isso, o debate perdeu a racionalidade que as decisões complexas necessitam. Mesmo com a crescente presença das operadoras privadas no setor elétrico, hoje o Grupo Eletrobras detém 30% da capacidade total de geração elétrica instalada (50,7 GW) e 44% das linhas de transmissão do país. Possui, também, participação societária majoritária de todas as usinas consideradas “estruturantes” da matriz elétrica brasileira (Itaipu, Belo Monte, Tucuruí, Santo Antônio e Girau).
A melhor forma de debater a privatização, nos termos da Lei nº. 14.182/2021, é analisá-la a partir do papel da Eletrobras no fornecimento de energia elétrica para a população brasileira. Este é um serviço essencial de utilidade pública e, portanto, o que importa é saber se a privatização afeta a eficiência deste serviço essencial pelos quesitos de modicidade, universalidade e qualidade. A modicidade significa tarifas menores aos consumidores, domicílios e empresas. O principal impacto sobre as tarifas advém da chamada “descotização”. A Lei da privatização altera o regime de exploração da grande maioria das usinas hidrelétricas sob concessão da União à Eletrobras, pela descontratação da energia elétrica sob o regime de “cotas” para o regime de “produtor independente”. Como essas usinas são antigas, com investimentos de construção já amortizados, o preço da energia gerada pelo regime de “cotas” é calculado pelo custo de operação (incluído a remuneração do operador).
As estimativas oficiais sugerem que a passagem do regime de “cotas” para o regime de “produtor independente” significaria um aumento do preço de energia vendida às distribuidoras, incluído o chamado “risco hidrológico”, da média de R$ 93/MWh para um espectro estimado entre 164/MWh (média ponderada MME) e 250/MWh (valor máximo ANEEL). Visando mitigar este impacto que aumentaria a tarifa para os consumidores, a Lei da privatização reserva 50% do valor das novas outorgas de concessão para a Conta de Desenvolvimento Energético – CDE, ficando os outros 50% para o Tesouro Nacional. A previsão é que o valor total de outorga seja de R$ 67 bilhões.
No entanto, especialistas do setor são unânimes em considerar o montante de R$ 33,5 bilhões destinado à CDE insuficiente para neutralizar o impacto tarifário. O problema associado à essa elevação de tarifas é uma restrição ainda maior ao acesso à energia pelas famílias pobres. O governo e os defensores da privatização argumentam que um de seus efeitos positivos é trazer “maior eficiência e competitividade” para o mercado, o que pode contribuir para redução do preço da energia no país. No entanto, a diluição acionária e a gestão profissional privada em nada garante a maior competitividade no setor, pois a governança da “Eletrobras privada” vai buscar maximizar os dividendos de seus acionistas e, para isto, vai exercer seu poder de mercado sem as travas atuais do interesse público via controle da União.
A “Eletrobras privada” ainda teria controle de quase ¼ do mercado de oferta de geração de energia, se constituindo num oligopólio privado com significativo poder de interferência nas tarifas. Uma vez que a lei da privatização não impede cruzamento de capital, o mais provável é que entre os novos acionistas do leilão de venda de novas ações estejam grandes players do setor já estabelecidos no Brasil. A questão da maior eficiência da gestão privada no caso dos ativos de concessão da Eletrobras é também falaciosa. Sem desafios de gestão, os ativos velhos (brownfields) de geração e transmissão são recursos da sociedade brasileira há muito amortizados. Isto é muito diferente de investimentos em ativos novos do setor (greenfields), em que a gestão privada pode ser bem mais eficaz (maior flexibilidade sem interferências políticas).
Por fim, o quesito da qualidade. Os “jabutis” presentes na Lei da privatização a tornam piora ainda. Os “jabutis” afetam indiretamente a qualidade pelo impacto ambiental, que se tornou uma questão crítica para o Planeta, e diretamente a modicidade, e por tabela, o acesso-universalidade. O impacto ambiental se dá, principalmente, pela obrigatoriedade de contratação do expressivo montante de 8 GW de térmicas a gás natural (equivalente a uma Tucuruí!) para energia nova de reserva, cujo despacho terá inflexibilidade de 70%, o que prejudica as fontes renováveis. O impacto estimado é de aumento de 33% das emissões de CO2 pelo setor elétrico do país, dificultando o cumprimento da NDC brasileira do Acordo de Paris.
O efeito sobre as tarifas de R$ 52 bilhões até 2036., segundo a EPE, equivale 80% do valor total da outorga. A não ser por justificativa ideológica, a privatização nos moldes propostos não se justifica tecnicamente e é lesiva aos interesses dos brasileiros. Um melhor modelo deveria ser voltado para redução das elevadas tarifas de energia elétrica do país. O Brasil poderia seguir o caminho dos países ricos também abundantes em recursos hídricos, como Estado Unidos, Canadá e Noruega, com reversão das usinas velhas para a União. A venda de aproximadamente 40% da energia elétrica gerada e 44% do transporte de energia (transmissão) a preço de custo teria impactos substantivos para os consumidores e contribuiria para um aumento da produtividade nacional. O futuro da Eletrobras sem ativos amortizados, poderia ser objeto de uma discussão na sociedade, sem mitos e açodamentos.
Mauro Borges Lemos é Professor-doutor em Economia (UFMG e UFBA), exerceu os cargos de Diretor-Presidente da Companhia Energética de Minas Gerais (CEMIG) e Ministro do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC).