Publicado originalmente no Cinegnose
POR WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA
Em toda sua história, a Rede Globo foi acusada de sexismo e racismo: uma teledramaturgia com um cast de atores que mais parecia ter saído de algum país nórdico, enquanto os poucos negros ocupavam papéis subalternos; as mulheres eram objetificadas em programas de entretenimento e o machismo sempre figurado como uma prova do verdadeiro amor. Ao mesmo tempo, o seu diretor de Jornalismo dizia que o Brasil nunca foi racista e que isso não passava de uma invenção da esquerda para dividir o País. Mas de repente, a emissora começou a apoiar e dar visibilidade a movimentos identitários e culturais (movimentos de gênero, étnico-raciais, geracionais que postulam a diversidade, alteridade e reivindicação de direitos sociais) como nunca antes. Política de “controle de danos” para tentar descolar a sua imagem do Golpe de 2016 e dar alguma credibilidade ao telejornalismo? Ou há algo além? De natureza estratégica em um ano eleitoral decisivo. “Se a Globo é a favor, somos contra!”, alertava o velho Brizola. E se nesse momento a emissora estiver pondo em prática outra velha máxima: “dividir para conquistar”? A Globo estaria desempenhando o seu derradeiro papel? Ser o para-raio do ódio tanto da esquerda quanto da direita?
“Quando vocês tiverem dúvidas quanto a que posição tomar diante de qualquer situação, atentem: se a Rede Globo for a favor somos contra. Se for contra, somos a favor”
(Leonel Brizola)
“Leva-lo a dividir suas tropas, e será mais fácil dominá-los”
(Sun Tzu)
Durante os anos de guerra midiática que culminaram no impeachment de 2016, a Rede Globo deu visibilidade a pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e foram esquecidos, ex-anônimos que confundiam militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas de toda sorte para engrossar o caldo de oposição ao Governo.
Como, por exemplo, um manifestante pró-impeachment que organizava acampamentos em frente à Fiesp na Avenida Paulista que vivia de recrutar mulheres para feiras e acusado de estelionato e de assédio sexual a modelos; ou o procurador do Ministério Público Federal, de controversa militância religiosa, acusado de agredir a esposa e mantê-la em cárcere privado – clique aqui.
Esses, e muitos outros, exemplares do Brasil Profundo costumavam ganhar visibilidade no dia-a-dia dos telejornais da emissora para atiçar ainda mais a extrema-direita a embarcar na cavalgada do Golpe.
Enquanto isso, crescentes atentados racistas e homofóbicos na ruas de São Paulo eram reportados de forma anódina pelo telejornalismo. Apenas como notícias da pauta policial. Como fossem eventos análogos a acidentes de carros ou roubos de celulares a mão armada.
Meros casos isolados, já que para a linha editorial da Globo, comandada pelo diretor de Jornalismo Ali Kamel e autor do livro “Não Somos Racistas”, as críticas contra o racismo não passavam de manobra da esquerda e do lulopetismo para “construir uma separação entre cores que nunca existiu, de fato, no Brasil”.
Talvez, o ponto de inflexão tenha sido em 2015 quando a ascensão profissional da jornalista negra Maria Júlia Coutinho (a “Maju”) na emissora despertou o ódio de grupos racistas nas redes sociais – clique aqui.
Naquele momento o roteiro para o impeachment já estava traçado e a massa de manobra nas ruas já organizada. A Globo teve que, então, tirar o pé do acelerador e iniciar o trabalho de rescaldo pós-golpe: uma política de “controle de danos” para tentar tirar das mãos a lama psíquica que teve que remexer por anos para dar o tranco subliminar nas massas e tornar o golpe político verossímil. E salvar a credibilidade comercial e jornalística da emissora.
Diante do sentimento de traição, a direita começou a acusá-la de “petista” quando viu perplexa a Globo colocar em ação um rolo compressor do politicamente correto na programação da emissora: a agenda da igualdade racial e de gênero, cidadania, tolerância etc. tomou conta não só do Jornalismo, mas também dos programas de entretenimento e teledramaturgia.
Os movimentos identitários e culturais (movimentos de gênero, afro-brasileiro, indígena, movimentos de jovens e idosos) passaram a merecer o apoio do jornalismo da Organização Globo, numa escalada até subliminar – não importa sobre do que se trata a pauta: repórteres nas ruas fazem enquetes procurando preferencialmente mulheres, negros e jovens (tanto melhor se o entrevistado reunir essas três características). Enquanto isso, o veterano William Waack era demitido por ser pego fazendo galhofas racistas diante das câmeras e o jornalista negro Heraldo Pereira ganhava protagonismo com o programa “Jornal da Dez” na Globonews no lugar do “Painel” apresentado pelo afastado Waack.
Muito além do “controle de danos”
Fica a questão: por que depois de décadas de ínfima participação de protagonistas negros no jornalismo e teledramaturgia, e de relegar causas de gênero a alguns programas femininos matinais, de repente a Globo tornou-se promotora de movimentos identitários?
Há algo mais além da política de “controle de danos” de uma empresa preocupada em se descolar da imagem de “TV golpista” – que aliás, se confunde com a própria história da emissora desde o golpe militar de 1964. Será que devemos levar em conta o alerta do falecido Leonel Brizola – se a Globo for a favor, então somos contra?
Talvez a direita seja intelectualmente tão primitiva que não perceba o que está por trás desse repentino alinhamento da Globo: o chamado “neoliberalismo progressista” que levou Obama ao poder nos EUA e que anima a atual agenda cultural da Globalização.
O aparente oximoro dessa expressão esconde um alinhamento perverso entre correntes dos movimentos sociais (feminismo, LGBT, antirracismo, multiculturalismo, entre outros), o setor de negócios baseados em serviços simbólicos e tecnológicos (Vale do Silício e Hollywood) e o capitalismo cognitivo representado por Wall Street e a financeirização.
Segundo a professora de Filosofia e Política da New School for Social Research de Nova York, Nancy Fraser, esse movimento dos “Novos Democratas” ficou bem distante da tradicional coalizão entre trabalhadores sindicalizados, indústrias, setores afro-americanos e classe média. Mas agora uma aliança entre empresários, classe média dos subúrbios e novos movimentos sociais. Todos emprestando um carisma jovem com a boa fé moderna e progressista – a aceitação da diversidade, empoderamento, multiculturalismo e os direitos das mulheres – Leia FRASER, Nancy. “The End of Progressive Neoliberalism” IN: Dissent Magazine, 2/1/2017 – traduçãoaqui.
Quando a pauta identitária é assumida, nos EUA, pelos Democratas e todo o setor tecnológico e de negócios que impulsiona a Globalização e, aqui no Brasil, pela TV Globo, começamos a desconfiar de uma estratégia ideológica: retirar a pauta do paradigma “materialista” das esquerdas para ser incorporada à agenda das reivindicações liberais pelos “direitos humanos”.
O discurso dos “direitos humanos”
Para o pensador francês Jean Baudrillard o discurso dos direitos humanos é um “valor piedoso, fraco, inútil e hipócrita” porque “se baseia numa crença iluminista na atração natural do Bem, numa idealidade das relações humanas” – leia BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal, Campinas, Papirus, 1990, p. 93.
Ademais esse Bem, valor ideal, é sempre concebido de modo protecionista, miserabilista, negativo, reacional. É a minimalização do Mal, profilaxia da violência, segurança. Força condescendente e depressiva da boa vontade, que no mundo só aspira à retidão e se recusa a encarar a curva do Mal, a inteligência do Mal – BAUDRILLARD, Jean, IDEM, p. 94.
O discurso dos direitos, tão facilmente incorporado pela grande mídia e pela pauta do politicamente correto, tende a ver o outro pelo olhar da piedade como vítima do “racismo e intolerância”, como alguém fragilizado que deve ser protegido pelos “direitos” que se recusam a encarar “o Mal” – a estrutura econômica da exploração do homem pelo próprio homem, da reprodução perversa da desigualdade como condição intrínseca para produção de valor e riqueza para poucos.
Dois exemplos do destino de discursos críticos materialistas que se converterem em lutas em defesa dos “direitos”: o ecológico e o feminista.
De movimento contracultural de crítica ao modo de produção capitalista e ao modelo de civilização Ocidental, o pensamento ecológico facilmente se transformou em movimento ambientalista corporativo – ONGs ambientalistas como o Greenpeace, por exemplo, contam com o apoio financeiro de grandes empresas petrolíferas, Fundação Rockfeller e mercado de energia elétrica – clique aqui.
Da estrutura perversa da sociedade de consumo cuja produção de riqueza de exploração humana gera desperdício e destruição, tornou-se a luta pelo “direito ao meio ambiente” que execra empresários gananciosos e contempla empresas “do Bem”. Como se a luta pelo direito ao ar e à agua naturalmente atrairia almas bem intencionadas (principalmente do meio corporativo), mantendo o “Mal” (o mecanismo econômico perverso e impessoal) fora de qualquer ação política.
Enquanto isso nos seus 200 anos de lutas das mulheres, o feminismo deixou de ser uma luta contra o sistema do capitalismo (cujos fenômenos como a prostituição, objetificação da mulher, desigualdade, violência e o determinismo machista eram extensões da ordem do patriarcado e da manutenção da propriedade privada) para se transformar na reivindicação pelo direito à igualdade dos gêneros.
Em artigo no Jornal GGN, Vitor Fernandes descreve que ficou “cada vez mais comum os discursos começarem apresentando a identidade do falante. Ex: ‘eu, mulher, negra, periférica, lésbica…, Eu, homem, LGBT. Ou Eu. Mulher, negra’”.
Nessa perspectiva, podemos começar a entender porque a Globo vem ativamente apoiando o discurso identitário politicamente correto dos chamados novos movimentos sociais. Para o viés jornalístico da emissora a vareadora Marielle Franco (PSOL/RJ) foi morta não porque investigava a intervenção militar no Rio e a violência policial em áreas pobres, mas porque era mulher, negra e lésbica.
Dividir para conquistar
O foco na pauta identitária da reivindicação por direitos resulta em quatro consequências: (a) falsa consciência; (b) fragmentação; (c) despolitização; (d) crescimento da extrema-direita.
(a) como falsa consciência o discurso do direito, como um véu, esconde a “curva do mal” a que se refere Baudrillard: uma sociedade, ao mesmo tempo produtora da consciência dos seus próprios direitos, e que simultaneamente fundamentada na desigualdade porque somente consegue produzir riqueza através da luta de classes. Os conflitos políticos e econômicos são desviados para a esfera cultural das relações humanas idealizadas.
Racismo, intolerância e preconceito são sempre vistos por um olhar abstrato entre a compaixão e uma indignação movida muito mais pelo ressentimento do que pela consciência política.
(b) A questão de classe é fragmentada (ou pulverizada) em uma série de grupos reivindicatórios conduzindo o clamor das ruas para a institucionalidade parlamentar. Com isso, o sistema triunfante retira a pressão da panela dos conflitos de classe para diluir no discurso abstrato da “cidadania”, do “respeito”, da “tolerância”, da “dignidade” e toda uma constelação de palavras que se tornam abstratas na medida em que se afastam do conflito fundamental da sociedade.
Por exemplo, com a ascensão das redes sociais surgiram os inúmeros coletivos ligados a pautas LGBTs, feministas e negras. Promoveram uma batalha linguística, caminhando separado das questões de classe.
(c) Muitos movimentos identitários se dizem apartidários. Fruto do discurso profilático e abstrato dos direitos. Como ilustra o depoimento de Vitor Fernandes em seu artigo:
Em outra situação um coletivo Ana Montenegro, um coletivo feminista-marxista, tentou levar para a marcha das vadias (um importante ato do movimento feminista) no Rio de janeiro, uma faixa, com claro teor marxista dizendo: “gênero nos une, classe nos divide” (ou algo do tipo) e foi impedida pela liderança do movimento (FERNANDES, Vitor, Jornal GGN, ).
Por isso, ideologicamente movimentos identitários caem como uma luva para a atual estratégia despolitizadora da Globo às vésperas das eleições – reforçar a aversão à Política como parte da estratégia do “dividir para conquistar”: neutralizar a crítica materialista da sociedade na qual se fundamentou historicamente a esquerda. Ou transformá-la em uma coisa chamada “marxismo cultural”.
(d) O ardil em apoiar os movimentos identitários pela grande mídia visa principalmente o cidadão médio, despolitizado, vivendo de um trabalho precarizado e, em decorrência, movido por uma visão de mundo conservadora. Por isso, um voto que se entrega facilmente ao discurso fascista de Bolsonaro ou congêneres.
A Globo repete a mesma tática de comunicação indireta criada pelos provocadores da direita do calibre Kim Kataguiri, Rodrigo Constantino ou Fernando Holiday – não se trata de ter a esquerda como interlocutora ou rival. Se trata de provocar, para de forma indireta falar com o cidadão médio despolitizado, desmobilizado e nutrindo o asco pela Política incutido pela Globo.
Por essa razão, a Globo assume um papel estoico e derradeiro: se converter no para-raio do ódio tanto da esquerda quanto da direita. Pelo menos, até as eleições.
O velho Brizola continua bem atual.