Há um detalhe incômodo no caso da modelo e apresentadora Ana Hickmann, agredida pelo marido, Alexandre Correa. A Polícia Militar foi à casa dela, num condomínio de luxo de Itu, e ficou sabendo que Ana havia sofrido ameaças verbais, além de ter o braço prensado numa porta pelo empresário.
O marido já havia saído da casa quando a PM chegou. A modelo foi então à Santa Casa da cidade, recebeu atendimento e foi liberada. Saiu do hospital com uma tipoia no braço e foi registar queixa na delegacia.
Agora vem o detalhe. Ana não foi sozinha à delegacia. Foi escoltada por uma equipe da PM. Certamente foi acompanhada pela polícia porque o entendimento era o de que ainda corria riscos.
Mulheres pobres e negras são espancadas e mortas a todo momento. Uma delas está sendo agredida agora em algum lugar do Brasil. Nenhuma será protegida por escolta.
A maioria tem suporte precário das polícias quando procura proteção do Estado. Muitas ainda são atendidas nas delegacias depois de responderem a uma pergunta constrangedora: o que você fez?
A maioria fica diante de homens para contar seus dramas ao Estado que deveria protegê-la. A maioria obtém proteção protocolar da Justiça. A maioria continua com medo e sob a ameaça do agressor e volta a ser agredida.
A maioria das mulheres não sabe o que é ser escoltada pela polícia do hospital até a delegacia. A maioria das mulheres agredidas deve ler as notícias sobre Ana Hickmann e se perguntar: por que ela teve escolta? Elas sabem a resposta.
Mulheres das periferias, negras, pobres, sem advogado e sem trajetórias públicas, não sabem o que é escolta da polícia.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há 14 casos de agressões contra mulheres no Brasil por minuto. Durante o tempo de leitura desse texto, mais de 40 mulheres terão sido agredidas. Uma mulher é morta a cada seis horas no país.
Desde o registro da ocorrência pela modelo, na tarde do dia 11, até a publicação de uma nota pelo marido – em que ele negava as agressões –, no dia seguinte, pelo menos quatro mulheres foram mortas.
E nenhuma delas teve alguma vez na vida escolta policial. Gays agredidos não têm escolta policial. Não há proteção policial para a população LGBTQI+.
As exceções são o que são. As exceções são casos raros que poucas sobreviventes devem ter para contar. A regra é a desproteção.
Por isso Ana Hickmann poderia passar a se envolver com ações substantivas em defesa da mulher. Não para que todas as agredidas tenham escolta, porque seria impossível.
Mas para que o Estado faça o que deve fazer, desde o registro das ocorrências policiais até as decisões do Judiciário em favor das agredidas e pela contenção dos agressores.
Ana deveria lutar para que medidas protetivas não sejam apenas formalidades, mesmo que tenha, no dia seguinte, dispensado a possibilidade de proteção, que poderia ter sido decidida pela Justiça.
Ana deve brigar para que as delegacias não tenham machos de extrema direita ouvindo mulheres feridas e emocionalmente destruídas.
Para que juízes reacionários e machistas sejam observados e avaliados por suas condutas e decisões, inclusive pelas corregedorias do Conselho Nacional de Justiça.
Ana Hickmann sabe que seu caso expôs, a partir da abordagem da polícia, o que significa ser branca, famosa e rica numa hora dessas.
Não se questiona se ela merecia ou não ter proteção. Todas merecem. Não se pergunta se, naquelas circunstâncias, ela deveria contar com a escolta da PM.
O que inquieta e incomoda é: por que mulheres sem fama, que não moram em condomínios, não têm a proteção do Estado?
Por que, ao invés de contarem com o acolhimento do Estado, mulheres pobres e negras têm os filhos assassinados em ações violentas e arbitrárias da PM, principalmente no Rio e em São Paulo?
Elas sabem as respostas. Ana Hickmann teve o que a maioria não tem e deverá desfrutar de outros privilégios por ser branca, famosa e rica.
Mulheres negras e pobres torcem por ela, para que o agressor seja punido e a modelo tenha a proteção e a reparação negadas a elas.
Que Ana Hickmann tenha paz e forças para lutar pela causa de mulheres invisíveis agredidas também pela estrutura de um Estado ineficiente, frouxo e violento.
Publicado originalmente no Extra Classe
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