POR EUGÊNIO ARAGÃO, ex-ministro da Justiça
Notícia de jornal e de hebdomadários é que nem jabuti em árvore. Não chega sozinho lá. Alguém ali o coloca. Para entender noticiário é preciso conhecer a história por detrás dele. Há sempre uma razão para ter este ou aquele título, este ou aquele lead, esta ou aquela abordagem. Há uma intenção latente em cada palavra, em cada frase, em cada parágrafo. O comunicador profissional é um formador de opinião e usa de toda a técnica para atrair o leitor para seu conceito da realidade.
O problema é que o leitor comum é desavisado, distraído. Toma a notícia por seu valor de face e, assim, não é difícil engambelá-lo. Engole qualquer coisa pelo argumento de autoridade: “se foi a Veja que disse, então é verdade”.
Pois bem. A tal revista Veja, do esgoto do jornalismo tupiniquim, que ajudou a desgastar o governo Lula, que trabalhou intensamente com Demóstenes Torres, Carlinhos Cachoeira para lançar estrume no PT e com quem o Ministro Gilmar Mendes sempre pôde contar politicamente, resolveu atacá-lo, na contramão de sua linha editorial. Acusa-o de fazer negócios com o grupo JBS, através do IDP, faculdade de que é sócio. Foi seguida pela menor IstoÉ, apelidada no mercado editorial de QuantoÉ, que, nesta semana apôs a foto do magistrado em sua capa, para denunciar suposto escândalo que envolveria a venda de uma faculdade ao governo estadual, em Diamantino, sua cidade natal, em Mato Grosso. Onde Veja vai, IstoÉ costuma ir atrás.
O noticiário contra Gilmar, embora cuide de graves denúncias, parece ser coisa articulada. Veio de modo bem concertado na mídia reacionária. Um jabuti colocado na coroa da árvore. Uma curiosidade que merece cuidadoso exame.
Não dá para dizer que Gilmar é um magistrado padrão. Sua atuação fortemente politizada não é um ponto fora da curva no STF. É uma curva torta, sem ponto. É corajoso e até temerário. Ninguém pode lhe tirar isso. Dá a cara a tapa e tem posições firmes na política partidária. Defende os seus com unhas e dentes e, se precisa para criar precedente, beneficia também os do outro lado. Por isso consegue, mesmo sendo na maioria das vezes implacável com o PT, tirar, aqui e acolá, uns gritinhos de apoio entusiasmado por seu “garantismo penal”, até do canto da esquerda política.
O Ministro Gilmar faz uso da imprensa. Tem seus fiéis escudeiros em jornais e blogs da direita empedernida. Aqueles que atacam a esquerda com discurso de raivosa falsa indignação. O pouco sério Antagonista, por exemplo. Usou-o para buscar instaurar investigação contra uma gráfica que prestara serviços à campanha de Dilma Rousseff. A notícia de que serviria de lavanderia de ativos logo se revelou insustentável e teve que amargar um despacho de arquivamento do Procurador-geral Eleitoral. Não se conformou. Gritou, berrou, deu pulinhos na cadeira do Plenário do TSE, mas fatos são fatos. A gráfica prestara serviços não só para Dilma, mas também para seu amigo Aécio Neves, para Marina Silva e até mesmo para o falecido Eduardo Campos.
Não pede perdão por seus erros. Demonstrar fraqueza não é com Gilmar. Nega-os até a morte, como o marido traidor encontrado pela esposa no motel. Por isso, coleciona uma vasta grei de desafetos.
E olha que Gilmar tem tudo para se impor como um jurista diferenciado no indigente cenário jurídico nacional. Em terra de cego, quem tem olho é rei. Tido como brilhante, consegue argumentar, é muito produtivo e aprendeu a boa retórica argumentativa alemã. Conseguiu transmitir seu conhecimento e sua cultura aos filhos e são poucos que conseguem competir com ele no debate doutrinário, quando o pratica com honestidade, o que é raro, pois prefere, na sua inteligência, usar a destreza para sofismar em favor deste ou daquele aliado.
Cai em contradição, mas não se importa. Forçou o andamento de três ações do PSDB no TSE para a cassação da chapa Dilma-Temer. Rechaçou os fundamentos do voto da então corregedora-geral eleitoral, Ministra Maria Tereza, que demonstrou cabalmente a insustentabilidade das iniciativas do PSDB. Estas inovavam na causa de pedir, para incluir acusações desconhecidas à época da propositura das ações. Gilmar insistiu em que fossem consideradas delações da Operação Lava-Jato, obtidas muito depois. Queria porque queria a cassação da chapa para depor Dilma Rousseff.
Ocorre que Dilma foi vítima de sórdido golpe parlamentar protagonizado por seu vice de chapa, o Sr. Michel Temer. Gilmar tornou-se íntimo amigo do golpista e passou já a não ter mais interesse na cassação. Deu um cavalo de pau na Avenida Brasil às seis horas da tarde e passou a acolher a tese que antes rechaçara, da Ministra Maria Tereza. Deixou na mão o corregedor que a sucedeu, Ministro Herman Benjamin, que se esforçando por dar curso às ações do PSDB na linha anterior de Gilmar, ficou, ao final, com a brocha na mão. O TSE, por maioria, em apoio a seu presidente, julgou improcedentes as ações e preservou o golpista Temer no cargo usurpado de presidente da república.
Este é só um exemplo dos vários golpes de João-sem-braço do Ministro Gilmar.
Mas, ultimamente passou a adotar tom cada vez mais crítico ao Ministério Público Federal e seu festejado “Combate à Corrupção”. Sem dúvida, com razão. Não poupou ninguém acometido pela sanha corporativa de perseguição, nem mesmo o Procurador-geral da República, o trôpego Rodrigo Janot. Bateu com vontade e passou a ser generoso nos mandados de habeas corpus em favor de vários investigados, alguns desconhecidos seus; outras, pessoas de sua relação e, até, aliados e amigos. Reforçou a fama maledicente no ministério público de que era excelente laxante, pois relaxava até prisão de ventre.
Comprou briga com a turminha tagarela e desaforada de Curitiba. O esgrimista mais atrevido, o Dartagnan Carlos Fernando Lima, chegou a admoestá-lo de público por diversas vezes, em suas narcisistas entrevistas cotidianas jornais afora. E a turma da Lava-Jato, que foi essencial ao golpe parlamentar ao destruir a reputação do governo com publicação criminosa de interceptação telefônica ilegal da Presidenta da República, é a queridinha da mídia golpista.
Entre Gilmar e Dallagnol, Veja e Isto É parecem ter optado ficar com o último. Querem manter a Lava-Jato em fogo brando, sempre pronta a ser usada com este ou aquele escolhido para ser o crucificado da vez.
A Lava-Jato para a imprensa é “imexível”, já Gilmar parece que não mais. Este só foi acolhido enquanto fez a cara de mau que forçou no processo do chamado “Mensalão”. Atingindo o PT, o Ministro foi um ferrabrás implacável, no melhor estilo curitibano. E, depois, quando Janot direcionou a metralhadora contra o governo Dilma, contou com todo apoio de Gilmar.
Mas, ao decidir o procurador-geral, nas suas xambreganças com seus auxiliares, alvejar Aécio Neves e o golpista Temer – est’último, segundo dizem, para garantir a permanência de seu grupo à frente do ministério público – o magistrado se tornou crítico ferrenho da persecução penal destrambelhada e adotou discurso garantista. Confirmou-se inimigo do Ministério Público Federal, merecendo até notinhas de repúdio da Associação Nacional dos Procuradores da República.
E essa turma com quem passou a se atracar é muito midiática. São artistas da conspiração com uso de pós-verdades. Gilmar, com as matérias de Veja e IstoÉ, caiu na rede e virou o peixe da vez. Não pelo que fez de errado, mas pela correção, embora interesseira, de seu rumo que não se amolda à ação dos jovens procuradores ativistas e nem à linha editorial dos que os bajulam no noticiário.
O jabuti está no topo da árvore. Compete a Gilmar tirá-lo de lá e talvez aprenda que, quem com ferro fere, com ele será ferido. A mídia – jornais e hebdomadários – não é amiga de ninguém. Tem sua pauta com dinâmica que não se confunde necessariamente com a desta ou daquela agenda de atores políticos. Nem do governo, nem do judiciário e nem do ministério público. Talvez esta lição também seja útil para o homilieiro e o esgrimista de Curitiba.