Secularistas contra religiosos: quem vai ganhar a luta sangrenta nos países muçulmanos depois da revolução?
POR DANIEL STEINVORTH, da Der Spiegel
O homem forte do Egito estava sentado na primeira fila da mesquita. “Qualquer um que critique o presidente é pior do que os hereges que atacaram o Profeta em Meca”, o imã pregou em seu sermão. Então ele entregou o microfone para o presidente egípcio, Mohammed Morsi, dizendo que ele também deveria enfrentar o fiel. Mas ele nunca teve essa chance.
“Abaixo Morsi! Abaixo a Irmandade Muçulmana!”, gritavam centenas de homens. “Basta! Não à tirania!” Para eles, era intolerável ouvir o presidente ser comparado a Maomé. Morsi, cercado por guarda-costas, teve que deixar a mesquita.
Mas era só o começo. Depois, mais de 100 mil pessoas se reuniram na Praça Tahrir para protestar contra seu presidente.
Não há sinais de que as tensões irão diminuir no Egito, e é difícil prever o resultado da luta de poder atual. O presidente, que se outorgou poderes especiais ditatoriais, parece impressionado com a tempestade que desencadeou entre os egípcios seculares. Ele também ordenou a votação de uma nova constituição, na qual a Assembleia Constituinte claramente votou a favor da Sharia, a lei islâmica. O projeto de Constituição em breve será submetido a um referendo. Mas a oposição não vai aceitar isso porque está determinada a deter a Irmandade Muçulmana, grupo do qual Morsi faz parte.
Isso diz muito sobre o país mais importante do mundo árabe, que está apenas no início de sua democratização. Também diz muito sobre o estado emocional da Irmandade Muçulmana, que chegou ao poder como resultado de uma revolução que tinha apoiado sem entusiasmo. O movimento islâmico tem décadas de experiência em lidar com governantes autoritários, mas não sabe nada sobre a liberdade e o pluralismo.
A Irmandade quer demonstrar força, especialmente no Egito, o país onde foi fundada, porque sabe que uma luta feroz está em curso sobre o papel do Islã político, especialmente nos países árabes que expulsaram ditadores recentemente: Tunísia, Líbia e Iêmen. Na Síria, onde a guerra está escalando, fica a pergunta sobre se o estado laico será prejudicado caso as forças mais radicais dentro da oposição prevalecerem.
Dois anos após o início da agitação no norte da África e no Oriente Médio, os islâmicos parecem ter surgido como os claros vencedores. Muitos agora estão alegando que a Primavera Árabe foi seguida de um Inverno Islâmico.
Em 2011, o mundo estava eufórico com a luta pela liberdade travada pelos manifestantes na Praça Tahrir. Mas uma sombra caiu sobre a revolução, quando milícias líbias colocaram o cadáver ensanguentado do ex-ditador Muamar Gadafi em exibição. E o derramamento de sangue diário na Síria vem como um anticlímax terrível para algo que ficou fora de controle.
O mundo árabe se tornou novamente uma fonte mais de preocupação do que de esperança para o mundo ocidental. Islâmicos estão ganhando eleições e formando governos, e até mesmo salafistas ultraconservadores, personagens obscuros que prometem eliminar a democracia, assumiram um papel. Eles também querem retirar as liberdades das mulheres árabes, banir biquínis nas praias turísticas e dar a administração da justiça para religiosos. A revolução acabou? Não é bem assim.
A luta pela alma árabe não foi decidida ainda. Onde quer que os movimentos apoiados pelo Islã político comecem a ganhar força, eles encontram resistência ampla. Vale a pena dar uma olhada nos países envolvidos na Primavera Árabe.
Exportando o islamismo para a Líbia
No início de novembro, um imã egípcio que tinha ido à Líbia para pregar teve uma experiência semelhante à de Morsi. Ele foi forçado a interromper seu sermão quando o público decidiu deixar a mesquita.
Pouco depois do colapso do regime de Gadafi, no verão de 2011, a Irmandade Muçulmana no Egito sentiu que tinha chegado o momento de exportar imãs radicais para a vizinha Líbia. Eles estabeleceram um ramo na cidade oriental de Benghazi, assim como uma editora de livros e uma estação de televisão. Eles se prepararam para as primeiras eleições parlamentares livres no país, fizeram uma campanha moralista, mas depois perderam com folga para a liberal “Aliança das Forças Nacionais”.
“Os líbios já são bons muçulmanos. Eles não entendem mais para o que o Islã deve fazer”, diz Abdurrahman Sewehli, um membro do parlamento líbio, comentando sobre a derrota da Irmandade. “Eles estão interessados na reconstrução do país, e em desenvolvimento, escolas e infraestrutura”.
A Líbia tem uma sociedade religiosamente homogênea, com muçulmanos sunitas formando quase 100% da população. As linhas divisórias na Líbia se dão principalmente entre clãs. As disputas no país desértico não são sobre a verdadeira prática religiosa, mas sobre os interesses tribais e a distribuição das receitas do petróleo.
E não é o único país que está preocupado com a imigração deliberada de grupos radicais.
Contradições no Iêmen e na Tunísia
Mesmo antes do início do ano, as duas mais importantes federações tribais no Iêmen, o Bakil e o Hashid, tinham cortado todo o contato com as células jihadistas no país. Guerreiros tribais iemenitas e extremistas ocasionalmente cooperaram, mas não por motivos ideológicos. Em vez disso, seus interesses coincidiam sobre dinheiro, contrabando e comércio de armas. Mas os jihadistas ofenderam as tribos quando violaram suas tradições. A guerra dos americanos contra as células da Al-Qaeda no país também tornaram mais difícil para os grupos tribais cooperar com os extremistas.
A sociedade do Iêmen é formada por clãs e profundamente tradicional. Para garantir o seu poder, o ex-presidente Ali Abdullah Saleh, no poder de 1990 até fevereiro deste ano, fez um pacto com o partido islâmico Islaeh, e por anos promoveu o imã radical e amigo Abdul Majeed al-Qaeda al-Zindani. Idéias liberais hoje são muito mais difundidas no país mais pobre da Península Arábica do que no tempo de Saleh. No entanto, e esta é uma das contradições do Iêmen arcaico, nenhum político pensa em questionar Sharia, que está em vigor no país.
O antípoda político do Iêmen fica a 4 mil quilômetros ao noroeste, a Tunísia, o país mais secular do mundo árabe. Isso não mudou depois de o primeiro-ministro Hamadi Jebali assumir o cargo no final de 2011. Seu partido Ennahda, um ramo da Irmandade Muçulmana do Egito, havia repetidamente assegurado aos tunisianos que não tinha a intenção de introduzir a lei islâmica ou restringir os direitos das mulheres. Eles ainda estão se comportando de maneira mais razoável que seus pares, observando a uma distância segura o jogo do presidente Morsi no Egito.
O diário Al-Fagr, do Cairo, escreveu que o presidente tinha realizado um “aborto no quinto mês”, uma referência aos cinco meses de Morsi no cargo antes de sufocar a democracia. O que acontecerá a seguir? Embora a Irmandade Muçulmana seja a entidade política mais bem organizada, diz o cientista político Paul Salim, o pluralismo da sociedade egípcia impõe limites para seu progresso.
Incerteza na Síria
E o que acontece com a Síria se o regime cair? O fim do governo de Damasco parecia iminente na semana passada, quando os rebeldes, supostamente, pela primeira vez, abateram dois helicópteros do Exército, com mísseis terra-ar. O incidente sugere que o regime do presidente Bashar Assad, cuja força aérea dava a ele superioridade militar, agora está seriamente ameaçado. Até agora, os Estados Unidos e outros países ocidentais tinham veementemente se recusado a fornecer à oposição armas do tipo usadas para abater helicópteros.
Ninguém sabe exatamente quantos jihadistas estrangeiros atualmente apoiam a rebelião na Síria, mas eles existem. Quando o governador da província de Homs e milícias rebeldes ligadas ao Exército Livre da Síria procuraram chegar a um acordo na semana passada, os combatentes estrangeiros frustraram o esforço de aproximação, relata um observador militar. “Os extremistas, que são vagamente associados à Al-Qaeda, têm sua própria agenda”, disse um agente de inteligência. “Eles não querem um cessar-fogo, pois querem exterminar o regime Baath e estabelecer um Estado islâmico”. Se a Síria vê um processo de transição semelhante ao que ocorreu na Tunísia e no Egito, a Irmandade Muçulmana, provavelmente, estará entre os primeiros grupos a se posicionar em Damasco.
“Pão, liberdade e Sharia islâmica!”, gritavam milhares de partidários da Irmandade Muçulmana no centro de Alexandria, na praça Al-Qaed Ibrahim, dez dias atrás, enquanto agitavam bandeiras egípcias e imagens do presidente Morsi.
“Pão, liberdade e justiça social!”, devolviam seus adversários, em número maior quando se juntaram seculares egípcios, esquerdistas e liberais. Foi um rude despertar para os islamitas em Alexandria, considerada uma de suas fortalezas.
Quando os dois lados, separados por alguns metros, tentaram gritar uns contra os outros, uma testemunha diz que sentiu que a situação poderá em breve sair do controle. “O ar estava cheio de ódio e o sentimento era de guerra civil.”