POR DANIEL OITICICA, de Buenos Aires
O Brasil faz parte desde sempre do inconsciente (e consciente) coletivo argentino. “O mais grande do mundo”, “La alegria no es solo brasilera”, “Tristeza naum tem fim” são expressões populares aqui na Argentina que ajudam a construir a imagem que nossos “hermanos” fazem da gente, para o bem ou para o mal.
Amor, ódio, inveja, respeito são sentimentos argentinos sobre os brasileiros que variam, segundo cada argentino, momentos históricos ou circunstâncias da realidade política, social e, é claro, futebolística do Brasil.
Brasil e Argentina são como dois irmãos, unidos pelo laço de sangue do DNA geográfico, e ao mesmo tempo separados pelo confirma nossas diferenças, históricas, culturais, sociais e políticas.
Na quinta-feira passada, o Brasil voltou a ocupar espaço no imaginário coletivo dos argentinos que saíram as ruas para protestar contra a lei de Reforma da Previdência do governo de Mauricio Macri que estava por ser votada pela Câmara de Deputados argentina. No meio da repressão generalizada, que transformou o bairro do Congresso em uma praça de guerra, como há muito tempo não se via aqui, o bordão “Isso aqui não é o Brasil” era um dos gritos que se escutava nas ruas.
Uma referência reivindicatória deste sentimento histórico que nos une (e nos separa). Hoje estamos muito mais unidos do que separados.
Unidos pelo espanto da coincidência de tragédias que significam os modelos econômicos e as “reformas” de Temer e Macri. Desde a campanha presidencial de 2015, já se sabia que um eventual governo de Macri chegaria para levar de novo a Argentina para o caminho do neoliberalismo. Experiência já vivida e fracassada.
A realidade do Brasil e suas “reformas”, propostas por um governo reconhecido como ilegítimo pelas forças políticas mais progressistas da Argentina, é hoje o grande fantasma da parcela da sociedade argentina que não quer voltar ao passado.
A Lei Previdenciária de Macri é um enorme pesadelo que está prestes a se tornar realidade. Entre outras aberrações, modifica a fórmula de cálculo do aumento semestral das aposentadorias, provocando uma perda de quase 50% no valor do aumento que os velhinhos argentinos teriam direito agora em dezembro. Volta a indexar o aumento das aposentadorias ao índice oficial de inflação. Essa indexação tinha sido eliminada por uma lei aprovada em 2009 durante o governo de Cristina Kirchner porque é claramente prejudicial para os aposentados.
Inflação é um conceito que designa o aumento continuado de preços. Mas não é mesma para todo mundo. Para uma pessoa idosa, a inflação tem a ver principalmente com o custo dos remédios e dos alimentos. Esses custos não aumentam no mesmo ritmo do índice de inflação oficial que contempla outros custos que nada tem a ver com a cesta básica dos aposentados. Desde então a fórmula passou a contemplar a elevação média dos salários em geral, o crescimento do PIB e também o índice de inflação. Durante todos esses anos, o salário mínimo dos aposentados argentinos subiu acima da inflação oficial.
Seu governo não é uma ditadura, e muito menos filhote de um golpe parlamentar, como, sim, é o nosso do Brasil. Mas o governo de Macri é produto de uma escandalosa manobra de estelionato eleitoral.
Macri ganhou as eleições de 2015 com a firme promessa de mudar o que estava mal e manter- e até mesmo melhorar- o que tinha sido feito de bom. Já no fim do primeiro ano de governo tinha feito tudo ao contrário. Muitas das coisas que publicamente prometera que não faria, fez. Estamos mais do que acostumados (mas não deveríamos permitir) a ver políticos que não cumprem com suas promessas. Mas uma coisa é prometer determinada medida e não cumprir. Outra, bem diferente, é adotar determinada medida que tinha prometido não adotar. Isso é estelionato.
1. Piorou o que estava mal. Indicadores econômicos, como inflação e déficit fiscal, que eram os maiores problemas da etapa final do governo de Cristina, praticamente dobraram. E não precisamente porque Macri incrementou o mal chamado “gasto público” em favor dos mais necessitados, como sim estava orientada a política do governo anterior. Não. Macri inverteu a balança. Realizou um processo de transferência de renda dos mais pobres aos mais ricos, com meia dúzia de decretos.
Para os setores concentrados: eliminou impostos e retenções às exportações. Para o povo em geral: Eliminou subsídios às tarifas de serviço público e transporte, sem exigir legalmente nenhum tipo de contrapartida para a melhora dos serviços prestados pelas empresas concessionárias. De janeiro de 2016 a novembro deste ano, o aumento médio das contas de luz dos argentinos supera os 800%, só para dar um exemplo.
2. Eliminou políticas que aliviavam o bolso dos mais pobres. Os aposentados já tinham sido vítimas da política “Hood Robin” de Macri. Uma das medidas mais cruéis de seu governo foi eliminar o programa que garantia medicamentos gratuitos para os aposentados. A desculpa foi de que precisava ser revisto, por denúncias de irregularidades. Nunca foi revisto. Este é somente um exemplo da voracidade neoliberal de um governo que ganhou as eleições prometendo não fazer tudo o que depois de eleito fez.
Mas por que a aliança Cambiemos de Macri voltou a ser a força política mais votada nas últimas eleições legislativas de outubro deste ano? A fórmula foi mais ou menos a mesma. Estelionato eleitoral. A Lei Previdenciária que tenta aprovar agora é o exemplo mais contundente. Durante a campanha já se falava no assunto. Seus opositores sabiam que Macri pretendia seguir o exemplo brasileiro. Uma vez mais prometeu não fazer o que agora depende apenas do Congresso para ser realidade. Uma “reforma” que prejudica os mais pobres.
O marketing político é outro grande aliado de Macri. Os argumentos para justificar cada medida de arrocho são sempre os mesmos: “A boa vida de antes era uma ilusão, criada por um grupo de populistas que imprimia dinheiro para ganhar eleições. Fizeram o povo acreditar que podia viver melhor. Tudo fantasia. Agora é hora de fazer um sacrifício para estarmos melhor no futuro”.
Oras, onde já se viu que para estarmos melhor, antes é preciso estar pior? Pode parecer um argumento frágil e ingênuo, e de fato é. Mas muita gente acredita. Conta com o apoio incondicional dos grupos concentrados de comunicação. E também é favorecido pela estratégia de sempre empurrar a corrupção para o centro do debate político. A corrupção é um mal da política (e do ser humano) no mundo todo, mas no fim, se todos são corruptos, acaba sendo uma conta de soma zero. O debate sobre quem rouba ou não rouba deve ser assunto para da Justiça. O debate que importa é o debate sobre modelos. Mais do que inconveniente para a Direita: Igualdade x Desigualdade. Justiça social x Concentração de riqueza. Mas este é outro assunto.
“Isso aqui não é o Brasil”, gritavam alguns argentinos na manifestação de quinta passada. Não é mesmo. Existem duas diferenças importantes. Buenos Aires não é Brasília. Que a sede do centro de decisão política esteja na cidade mais importante do país, e não num planalto cercado de lagos por todos os lados faz muita diferença. A pressão popular é menor. Brasília não está onde está por acaso. A representatividade dos sindicatos aqui também contribui para uma maior pressão quando a meta é defender a classe trabalhadora. Não foi por acaso que nossa Reforma Trabalhista debilitou ainda mais o poder sindical no Brasil.
Hoje, o governo Macri vai fazer uma nova tentativa de aprovar sua Lei Previdenciária. E o Brasil vai voltar a ser no imaginário coletivo das ruas um exemplo a não seguir.